terça-feira, 7 de março de 2017

Documentário

Coronel João Bezerra - O Comandante da Volante

Por Charles Garrido


Eis aqui o primeiro trabalho audiovisual totalmente dedicado à figura do Coronel João Bezerra da Silva, indubitavelmente, o comandante maior da volante policial alagoana, que no famoso combate da Grota do Angico, ocorrido no dia 28 de julho de 1938, pôs fim à "Era Lampião". Segue um pouco do histórico do documentário:

Locações: Fortaleza, Recife e São Paulo
Participações: Ângelo Osmiro e Antônio Amaury
Depoimento In Memoriam: Cyra Britto Representando a família: Paulo Britto.
Direção: Anne Ranzan (PE) e Renata Sales (CE)
Produção e Apresentação: Charles Garrido
Duração: 01:22:25

Agradecemos a todos que colaboraram em prol da consolidação dessa obra e desde já, pedimos a compreensão do público quanto às nossas limitações, pois não somos profissionais da área televisiva ou cinematográfica, mas sim, apenas pesquisadores e estudiosos do tema. Aceitamos críticas, sugestões e elogios. Entretanto, permitam-nos comunicar que, todo e qualquer comentário inserido será previamente analisado, caso algum fuja aos padrões, infelizmente será excluído, pois pautamos o respeito para com os componentes e personagens históricos que participam do vídeo.

Seguimos uma ordem cronológica, inserimos cinquenta e três fotografias, dentre elas, vários documentos pessoais do militar.

No final, uma surpresa, ouviremos um trecho da entrevista exclusiva (apenas em áudio) com João Bezerra, realizada pelo escritor Antônio Amaury, no ano de 1969, no município pernambucano de Garanhuns. Para um melhor aproveitamento, colocamos uma legenda sincronizada à fala do militar. Finalizamos citando que, o intuito maior é poder colaborar de alguma forma para o engrandecimento e divulgação dos temas, cangaço e volantes.


Na Bahia

As faces e os relatos das vítimas de Lampião

Rostand Medeiros

Nos velhos tempos do sertão nordestino, na época do cangaço, onde quase sempre a justiça estava junto aos mais fortes e destemidos, uma família seviciada poderia ter os seus membros (principalmente mulheres) marcados pelo resto da sua existência.

 A centro vemos Dona Maria Martins, a sua direita a filha que escapou da sanha dos cangaceiros e a sua esquerda está Romana, que segundo reportagem do jornal A Noite, foi estuprada por Lampião.

Dependendo das ações hediondas praticadas e diante dos rígidos códigos morais do sertão na época, se não houvesse algum membro do grupo familiar com disposição de buscar a reparação, buscar a vingança, a chaga desta família poderia ser muito pior. Consequentemente a cortina de silêncio era ainda mais forte.
Lampião
Para as vítimas e seus parentes continuarem tocando a vida em meio a muita dor e sangue derramado, um remédio muito comum era total negativa em comentar fatos e tentar buscar o esquecimento. Existiram exceções. 

Foram os crimes mais sanguinários e bárbaros, praticados principalmente contra famílias inteiras, ou casos onde as sevícias foram tão brutais, tão hediondas, que chamaram a atenção de toda uma comunidade e agora estão registrados em muitos materiais produzidos sobre o tema.

Outras exceções foram os raros relatos produzidos por jornalistas durante o período dos conflitos, mostrando a dor daquela gente que vivia nos rincões esquecidos e distantes do Brasil.
Aqui trago um destes.

Correspondente misterioso

Nos primeiros seis meses de 1931 o Brasil ainda sofria as consequências do golpe que havia implantado um novo regime político em outubro do ano anterior. Administrativamente muitas mudanças ocorreram na estrutura e composição dos aparatos de segurança pública pelo país, tornando-os limitados por certo período de tempo em suas ações repressoras aos cangaceiros. Isso facilitou muito a vida dos bandoleiros errantes pelo sertão nordestino, principalmente o do chefe Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

A LAMP BA (2)

Neste período este grupo atuava principalmente nos sertões baianos, onde praticavam suas rotineiras rapinagens e as atrocidades não eram incomuns. Aparentemente tantos foram os acontecimentos negativos naqueles primeiros meses de 1931, que o jornal A Noite, do Rio de Janeiro, enviou um correspondente e um fotógrafo para o cenário dos acontecimentos[1].

O interessante é que, mesmo lendo várias páginas deste periódico, estranhamente não foi divulgado o nome do jornalista que realizou este trabalho. É dito apenas o apelido do fotógrafo – João Batatinha. Provavelmente por questões de segurança o nome do correspondente não foi divulgado.

“Iriam assistir uma coisa bonita…”

Os dois enviados do periódico carioca seguiram no dia 20 de abril de 1931 pela estrada carroçável que ligava as cidades baianas de Uauá e Senhor do Bonfim, passando em vários locais que anteriormente haviam sido atacados pelo bando de cangaceiros de Lampião[2].

Um dos primeiros relatos foi conseguido no lugar São Paulo, a cerca de 40 quilômetros de Uauá. Ali Lampião buscou acertar contas com Manoel José Cardoso, conhecido como “José Pequeno”[3].

A esquerda vemos o fotógrafo João Batatinha, ao centro um guia sertanejo e a direita o correspondente de A Noite, o qual não descobrimos sua identidade.
A esquerda vemos o fotógrafo João Batatinha, ao centro um guia sertanejo e a direita o correspondente de A Noite, o qual não descobrimos sua identidade.
Testemunhas comentaram que primeiramente escutaram o tropel de cavalos, seguido do som de chocalhos batendo e vozes gritando palavrões. Lampião, que estava na ocasião com óculos redondos e escuros, chegou com seus homens em galope largo, cercaram sem demora o sertanejo José Pequeno e lhe indagaram se fora ele quem de outra ocasião avisou aos policiais, ou “macacos”, a localização do bando naquele setor. Independente dos rogos de inocência do homem e de sua mulher Ana Cardoso, em meia hora eles foram despidos, amarrados e colocados no lombo de um animal sem sela.

Defronte a capelinha do pequeno arruado, Lampião mandou seus homens trazerem todos que ali moravam, debaixo de cacete se fosse necessário, para verem o que ele fazia com os traidores. Logo homens, mulheres e crianças estavam reunidos diante do casal despido e montado em um pangaré. Lampião foi logo anunciando que eles “iriam assistir uma coisa bonita…”.

A LAMP BA (1)
 Ali, diante de todos, sem nenhuma cerimônia ele sangrou Manoel José Cardoso, enfiando com força seu grande punhal, até o cabo, na parte do corpo que fica entre o ombro e pescoço. Os gritos provocaram risos dos cangaceiros e choro entre os membros da pequena comuna. Segundo o correspondente, a mulher Ana Cardoso ficou louca.

Além deste espetáculo atroz, os cangaceiros mataram a tiros de pistola José Felix, que, a pedido do sangrado José Pequeno, foi a Uauá informar a polícia sobre o paradeiro de Lampião. O assassinato de Felix deixou ao desamparo mulher e larga prole de filhos. Outro que foi atacado, sendo submetido a uma série de torturas, foi o coronel João Antônio Cardoso, o mais abastardo do lugarejo[4].

A LAMP BA (3)

Na fazenda Tapuia, por volta da meia noite do dia 8 de abril, Lampião e seus homens atacam a casa de Tibério Lucas Correa. Além de trabalhar na roça para manter mulher e uma extensa família, Tibério tinha um pequeno estabelecimento comercial para atender os viajantes, onde não faltava uma cachaça “januariazinha” (aguardente produzida em Januária-MG) e cigarros. Foi tido pelo correspondente como “Um preto muito querido de todos que trafegavam pela estrada Uauá – Senhor do Bonfim”[5].

Lampião e seus cangaceiros foram logo mandando aquele sertanejo pobre abrir seu negócio e colocar uma garrafa de cachaça, que logo foi esvaziada pelos sicários. Pediram ouro e dinheiro, mas Tibério disse que nada tinha. Nesse momento a cabroeira começou a descer dos animais e o assustado negociante empreendeu uma desabalada carreira para o meio dos matos, enquanto os cangaceiros gritavam “O desgraçado está fugindo! Mata! Mata!”. Por sorte ninguém atirou!

A LAMP BA (16)
Quem teve de aguentar a fúria de Lampião e seus homens foi Dona Lúcia, a mulher de Tibério, que foi surrada a bofetadas, chicoteada e ameaçada. Lampião prometeu que na próxima vez que ali retornasse matava seu marido. Depois mandou seus comandados colocarem fogo na casa e só deixou a mulher e os outros familiares saírem a pedido de um dos seus homens, que possuía um espírito mais humanitário naquele momento de fúria gratuita.

Na ocasião da visita do correspondente e do fotógrafo João Batatinha, o desolado Tibério e seus familiares passavam o dia na casa calcinada e a noite dormiam no meio da caatinga, onde o pobre homem havia sido picado no rosto por uma lacraia e trazia a marca de mais este infortúnio[6].
“Montada, dinheiro e ouro”

Para o correspondente de A Noite, informações transmitidas por Martinho Malta, da fazenda Mucambo, assaltada no dia 9 de abril de 1931, informava que o grupo de Lampião tinha 15 componentes, sendo seu braço direito o cangaceiro Corisco e a maioria destes utilizavam principalmente roupas de mescla. 

Estavam todos armados de fuzis Mauser, vários portavam pistolas Parabellum, trazendo sempre duas ou três cartucheiras largas e cheias de munições. Além destes aparatos bélicos estavam presentes os característicos chapéus de couro ornamentados e os punhais, com alguns cangaceiros levando duas destas peças de cutelaria, algumas com até 65 centímetros no tamanho da lâmina.

Foi comentado ao correspondente de A Noite que os cangaceiros “Vivem sempre satisfeitos”. Em alguns momentos trafegam nas estradas fazendo algazarras, em outros seguem no mais completo silêncio. Fazem brincadeiras uns com os outros, descompõem-se, normalmente se excedem, mas mantém muito respeito pela figura do chefe Lampião[7].

Mas, apesar das brincadeiras entre os membros do grupo, o que o correspondente não deixou de ouvir naqueles ermos sertões foram informações de atrocidades praticadas pelos cangaceiros.
Fazenda Pereiro, onde estão os irmãos Francisco, João e Antônio Ferreira Barbosa e seus familiares. Surras e casas saqueadas.
Fazenda Pereiro, onde estão os irmãos Francisco, João e Antônio Ferreira Barbosa e seus familiares. Surras e casas saqueadas.
Na fazenda Pereiro (ou Pereiros) o jornalista e o fotógrafo encontram Francisco Ferreira Barbosa, conhecido como Chiquinho, também proprietário de uma bodega a beira da estrada. Este se mostrava desembaraçado e comentou abertamente os problemas e assombros causados perla presença de Lampião na região.
Narrou que eram duas da manhã do mesmo 9 de abril quando Lampião chegou. Este lhe deu boa noite secamente e foi exigindo “montada, dinheiro e ouro”. Chiquinho disse nada ter, mas Lampião falou a seus homens “Traga uma luz. Vamos ver o ouro e o dinheiro que ele está escondendo”. A mulher Alzira entregou aos celerados algumas pequenas peças de ouro, mesmo assim Lampião retirou seu punhal e passou a rasgar tudo que era de pano para encontrara algo mais.

Com o resultado negativo nas buscas os cangaceiros foram para a bodega de Chiquinho, que ficava defronte a sua casa, onde beberam muita cachaça, cerveja, quebraram louças e obrigaram o dono a tomar três xícaras de bebida.

Ainda na fazenda Pereiro atacaram as casas de João e Antônio Ferreira Barbosa, irmãos de Chiquinho, onde não deixaram de se exceder nas barbaridades. Antônio foi chicoteado no rosto impiedosamente e João foi surrado, teve a casa impiedosamente revistada e muita coisa foi quebrada.

Depois Chiquinho foi obrigado a servir de guia para os celerados. No caminho Lampião perguntou quem tinha dinheiro na região e onde ele podia encontrar uma “viúva apatacada”, uma viúva endinheirada. Logo chegam a fazenda Chumbado, onde pernoitaram e o guia improvisado volta para junto de seus familiares transidos de terror[8].
A pequena Judite de nove anos, fotografada em Senhor do Bonfim.
A pequena Judite de nove anos, fotografada em Senhor do Bonfim.
Segundo a narrativa do correspondente, outra das propriedades atacadas na região naqueles primeiros dias de abril de 1931 foi a Olho D’água, do viúvo Francisco da Costa, que estava fora e na casa estavam apenas duas crianças, a pequena Judite de nove anos e seu irmão de cinco. Esta contou que os cangaceiros mal encarados chegaram comandados por Lampião e exigiram o que ali existisse de valor. O irmão menor tentou fugir e foi detido por um cangaceiro com seu fuzil. 

Os cangaceiros levaram um relógio, algum ouro e uma pequena quantia em dinheiro. O correspondente encontrou as crianças aos cuidados de uma tia na cidade de Senhor do Bonfim e esta informou que Judite e o irmão estavam em “um estado nervoso de fazer dó”. O que hoje modernamente denominamos de “traumatizados”[9].

“Eu diria que ele era pai do céu, quanto mais meu!”

No dia 21 de abril vamos encontrar os dois homens do jornal A Noite seguindo pela estrada que ligava Senhor do Bonfim a fazenda Riacho Seco[10]. Quando alcançaram o lugar Caldeirão, seguiram em demanda do sítio Vargem Seca, onde deixaram o veículo. Percorreram a pé, por quatro quilômetros, até o sítio Junco, onde o proprietário Manoel do Quinto acompanhou os visitantes por mais outros quatro quilômetros, até finalmente chegarem à fazenda Passagem.
Joaquim Gomes Cardoso, sua esposa e filho diante de sua casa no lugar Passagem.
Joaquim Gomes Cardoso, sua esposa e filho diante de sua casa no lugar Passagem.
Ali souberam que os cangaceiros se apresentaram ruidosamente por volta das nove da manhã e foram direto para a casa de Joaquim Gomes Cardoso, que possuía problemas físicos desde o nascimento, que o deixou com uma diferença no tamanho de suas pernas.
Pediram ouro e dinheiro, mas Joaquim respondeu que nada tinha “por ser um pobre aleijado”. Isso nada impediu que Lampião lhe roubasse uma sela, no que Joaquim tentou demover o chefe cangaceiro do seu intento, pois não podia andar corretamente e precisava daquele material para seus deslocamentos na região em um magro jumento. O resultado foi uma terrível saraivada de chicotadas dada por um dos cangaceiros presentes.
Vaqueiro Manoel Cândido, que teve a casa invadida e a mulher igualmente estuprada pelos cangaceiros no lugar Passagem.
Vaqueiro Manoel Cândido, que teve a casa invadida e a mulher igualmente estuprada pelos cangaceiros no lugar Passagem.
Para parar a tortura naquele indefeso deficiente físico, o cangaceiro que batia disse “Se quiser que eu pare tem de chamar Lampião de papai!”. O corresponde de A Noite perguntou se Joaquim disse aquilo e sua resposta foi até engraçada – “Ora, seu moço, e quem é que não chamava? Eu diria que ele era pai do céu, quanto mais meu!”[11]. Na reportagem outras quatro casas foram visitadas na propriedade Passagem, com a mesma repetição de saques e surras.

Os dois enviados do jornal refizeram todos os oito quilômetros na volta até o veículo e seguiram para Senhor do Bonfim e de lá para a propriedade Cachoeirinha, onde uma família estava ali refugiada.
Romana, estuprada por Lampião na fazenda Passagem.
Romana, estuprada por Lampião na Fazenda Passagem.
Era a família de Bertoldo Cândido dos Santos, que apresentou relatos ainda mais chocantes sobre os momentos em que os cangaceiros estiveram na fazenda Passagem. A mulher de Bertoldo, Dona Maria Martins, contou que no dia do ataque só estava em casa a sua filha Romana, conhecida como “Bizunga”. Ela reparava uma roupa e ao ver a chegada dos cangaceiros tentou correr, mas foi impedida por Lampião que lhe apontou o fuzil e intimou-a a parar.
Na mesma hora o chefe disse a dois dos seus homens “Venham ver que coisa bonitinha tem aqui”. 

Mandou seus comandados tomarem conta de Romana enquanto foi averiguar o que acontecia nas outras casas da fazenda Passagem. Um dos homens ainda pensou em avançar na moça, que possuía feições bastante generosas na opinião do correspondente, mas foi impedido pelo companheiro por medo da reação do chefe.
Casa da fazenda Pontilhão do Campo do Maio, também atacada pelos cangaceiros.
Casa da fazenda Pontilhão do Campo do Maio, também atacada pelos cangaceiros.
O enviado de A Noite afirma que no retorno de Lampião a casa da jovem sertaneja, aparentemente sem maiores delongas, este partiu para cima de Romana e a estuprou. Ela ainda foi ferida a punhal por tentar se defender. Não foi informado se outros cangaceiros se aproveitaram sexualmente da jovem indefesa.
O correspondente informou que a irmã de Romana havia escapado por se encontrar fora de casa, mas em sua opinião o ataque sexual a garota havia desestruturado de tal maneira a sua família, que seu pai Bertoldo estava com características de “quem estava variando”. Ou seja, ficando louco[12].
Mas este flagelo não ficou restrito apenas a Romana. O vaqueiro Manoel Cândido, ainda aparentado de Bertoldo, teve a casa invadida e a mulher igualmente estuprada pelos cangaceiros.

O material iconográfico existente nas reportagens aponta que a atuação do bando de Lampião nos sertões baianos naqueles primeiros dias de 1931, foi principalmente o ataque a pequenas e simples propriedades e lugarejos. Talvez o número reduzido de cangaceiros não trouxesse a Lampião a devida segurança para atacar locais maiores naquele período[13].
Fogueira de ódios e de vinganças

Nesta época o jornal A Noite sempre trazia notícias relacionadas aos cangaceiros e, segundo foi publicado posteriormente, a reportagem sobre aqueles três ou quatro dias da passagem do bando de Lampião nas caatingas entre as cidades baianas de Uauá e Senhor do Bonfim obteve extrema repercussão no Rio de Janeiro. Tanto que a reportagem foi bastante ampliada na revista Noite Ilustrada, com a publicação de uma grande quantidade de fotografias[14].
O idoso que aparece na foto era conhecido na região de Senhor do Bonfim como
O idoso que aparece na foto era conhecido na região de Senhor do Bonfim como “Velho Motta”. Acreditavam que tinha entre 90 e 100 anos de idade em 1931 e que havia servido junto a Antônio Conselheiro na Guerra de Canudos. Morava na fazenda Pontilhão do Campo do Meio e nem ele escapou dos cangaceiros.
Não podemos deixar de comentar que por mais interessante que sejam estas reportagens produzidas em 1931, por mais fotografias apresentadas, não sabemos o quanto de veracidade realmente elas trazem. Não sabemos a história do profissional que foi aos locais e se as histórias transmitidas pelas pessoas entrevistadas relatavam a realidade dos fatos. Nem sabemos também o que ficou da tradição oral sobre estes episódios. Para dirimir dúvidas seria necessário mais pesquisas e um trabalho de campo.

Mas não foi apenas o periódico carioca que tratou do tema. O autor e pesquisador baiano Oleone Coelho Fontes, no seu ótimo livro Lampião na Bahia, trás um capítulo inteiro dedicado a estes ataques em abril de 1931, inclusive fazendo referência a atuação da reportagem de A Noite entre Uauá e Senhor do Bonfim e ampliando os detalhes dos ataques[15].
Oleone Coelho Fontes comenta na página 248 do seu livro Lampião na Bahia que Maria Bonita e outras cangaceiras provavelmente entraram no bando de Lampião em fins de 1930 e início de 1931. Mas nesta série de reportagens deste correspondente, nada existe sobre mulheres no grupo de bandoleiros.

Outro ponto a ressaltar, é se existiu um possível direcionamento político com esta reportagem?
Pessoalmente eu não tenho uma resposta para este questionamento. Entretanto, faziam apenas seis meses que uma nova ordem política emanava do Palácio do Catete e o revolucionário cearense Juarez Távora tinha tanto poder nos estados nordestinos, que era conhecido como “Vice-Rei do Norte”. Consta que ele desejava muitas mudanças nas relações de poder na região e tinha o apoio do então Presidente Getúlio Vargas. O certo é que em menos de dez anos os cangaceiros seriam retirados de circulação. Mas isso não acabou com a violência do campo!
A cidade baiana de Monte Santo, outro local visitado pelo correspondente de A Noite.
A cidade baiana de Monte Santo, outro local visitado pelo correspondente de A Noite.
Vale ressaltar que as reportagens produzidas pelo periódico carioca praticamente nada comentavam sobre a violência praticada pelas autoridades policiais, que existia e era tão feroz quanto à praticada pelos cangaceiros. No que ajudava a sempre manter acesa a fogueira de ódios e de vinganças que notabilizou o sangrento período do cangaço no Nordeste do Brasil. Mesmo que os artigos publicados nas edições do jornal A Noite do mês de abril de 1931 não sejam plenamente corretos, sejam imparciais e mesmo sem saber o seu direcionamento político, ao ler este trabalho produzido há 84 anos, à única certeza que fica sobre as violências deste período é que os perdedores eram sempre os mais fracos.

REFERÊNCIAS
[1] A Noite foi um jornal vespertino criado pelo jornalista niteroiense Irineu Marinho e lançado em 18 de julho de 1911 no Rio de Janeiro. Empreendedor, Irineu Marinho vislumbrou já naquela época a ideia do conglomerado de mídia, com uma ação dinâmica no jornalismo. Em 1922, sendo seu jornal acusado de cooperar com o levante dos tenentes do Forte de Copacabana (18 do Forte), passou quatro meses preso na Ilha das Cobras (baía de Guanabara), de onde saiu com a saúde abalada. Partiu para a Europa com a família em 1924, de onde voltou para fundar, em 29 de julho de 1925, O Globo – herdado por seu primogênito, Roberto Marinho, com sua morte, em 21 de agosto, aos 49 anos. Sobre o envio do correspondente e do fotógrafo, as razões do envio destes profissionais não são comentadas.Verhttp://observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/_ed723_irineu_e_o_jornalismo_no_seculo_20/
[2] Mesmo aparentemente o trajeto realizado pelos enviados do jornal em 1931 ser diferente das modernas estradas asfaltadas que ligam os dois municípios baianos, segundo o jornalista, sem maiores paradas, o trajeto por eles realizado levaria cerca de doze horas. Hoje é realizado, com tranquilidade, em duas horas e meia.
[3] Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 20 de abril de 1931, 2ª página (http://memoria.bn.br/). 
[4] Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 11 de maio de 1931, 3ª página.
[5] A cidade mineira de Januária foi um importante entreposto comercial em uma época que o Rio São Francisco permitia a navegação de grandes barcos a vapor. A aguardente de Januária passou a abastecer todo o país, sendo apreciada e elogiada pelos maiores conhecedores, tornando a cidade um sinônimo de cachaça de qualidade produzida no Brasil. O primeiro engarrafador de aguardente em Januária, segundo informações locais, foi o Sr. Abílio Magalhães em 1926 com a marca “Januária Crystal”. Em 1928 o Sr. Claudionor Carneiro lançou a marca “Januária”, que posteriormente teria seu nome alterado para “Claudionor”. Outras marcas surgiram na cidade, muitas das quais já não existem mais. Ver http://cachaca.januaria.zip.net/
[6] Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 11 de maio de 1931, 3ª página.
[7] Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 11 de maio de 1931, 3ª página.
[8] Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de terça-feira, 12 de maio de 1931, 3ª página.
[9] Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 14 de maio de 1931, 1ª página.
[10] Segundo uma das notas do jornal, a cidade de Senhor do Bomfim tinha no início da década cerca de 12.000 habitantes e apenas 23 policiais para protegê-la, sendo raras as localidades que tinham mais de 12 policiais. Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 1 de fevereiro de 1931, 1ª página.
[11] Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 14 de maio de 1931, 1ª página.
[12] Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 15 de maio de 1931, 1ª página.
[13] Vale lembrar que antes destes ataques no início do abril, Lampião evitou pela segunda vez um confronto contra os defensores da cidade baiana de Itiúba. Ver http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/2010/05/itiuba-repeliu-lampiao-2-por-rubens.html
[14] Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 18 de maio de 1931, 1ª página.
[15] FONTES, Oleone Coelho. Lampião na Bahia. 4a. ed. Petrópolis : Vozes, 2001. Páginas 214 a 217.

Pescado no Tok de História

sexta-feira, 3 de março de 2017

Corisco

O assassinato do 'diabo louro'

Por Sálvio Siqueira

O alagoano Cristino Gomes da Silva Cleto foi um ‘cabra’ de Lampião em dois períodos distintos. O primeiro período foi nas quebradas do sertão pernambucano, na região do Pajeú das Flores, onde recebera a alcunha de “Corisco”, e tendo como chefe direto o cangaceiro “Jararaca”, José Leite Santana, natural de Buique, PE, muito curto, e o segundo, já na fase baiana, mais longo, no entanto, sem ter tanta participação constante entre os dois bandos.

Há não ser quando Corisco era convocado, assim como os outros chefes dos subgrupos também eram, para uma empreitada maior de tempos em tempos. Com essa ‘convocação’ o “Rei dos Cangaceiros” lembrava a seus ‘súditos’ quem comandava.

 “(...) um novo componente do bando de Lampião chamou a atenção do cangaceiro Jararaca, um dos seus lugares-tenente mais valentes e perigosos. O novo cangaceiro era Cristino Gomes da Silva Cleto, soldado desertor do Exército que servira em Aracaju,(SE), nascido em 10/08/1902(...) nas encostas da Serra da Jurema, próximo a cidade de Matinha de Água Branca (atual Água Branca). Cristino entrara para as fileiras do cangaço no dia 24 de agosto (de 1926) (quatro dias antes do ataque (a fazenda Tapera) na vila de Santa Maria (atual Tupanaci), à margem direita do rio Pajeú, sendo recebido por Lampião, na casa do senhor José Bezerra. Era valente no combate e da boca de seu rifle papo amarelo parecia sair fogo.

A rapidez com que se movia lembrava um raio, rolava pelo chão, atirava e gritava descompondo o inimigo. Surgiu ali o apelido que o acompanhou para o resto de sua vida: “CORISCO”(...).” (“AS CRUZES DO CANGAÇO – Os fatos e personagens de Floresta – PE” – SÁ, Marcos Antônio de. E FERRAZ, Cristiano Luiz Feitosa. Floresta, 2016)

Cristino inicia sua saga no pequeno Estado sergipano, quando era soldado do Exército brasileiro, destacando, servindo, no 28º Batalhão de Caçadores de Aracaju, durante a Revolta Militar de 1924, iniciada em São Paulo, SP, e tendo como consequência na Capital do Estado de Sergipe, Aracaju, uma ‘revolta’, ou motim, onde se tentou dar um golpe, sendo o mesmo abafado pela Força legal no interior do Estado e outra frente vinda do vizinho Estado baiano. Com a derrota dos ‘revoltosos’, Cristino e boa parte dos homens que participaram sob ordens superiores, fogem e tornam-se desertores.

Havia bons motivos para eles andarem longe um do outro, Lampião e Corisco. Primeiro para confundirem as volantes que os cassavam dia e noite, e o segundo, as companheiras, de Lampião, Maria Gomes, a cangaceira Maria Bonita, e de Corisco, Sérgia, a cangaceira Dadá, não se ‘bicarem’ muito. Essa ‘distância’ entre os grupos, prevista e projetada entre os dois bandos, era uma tática que deu bons resultados. Ocorreram fatos em dias iguais, em lugares distantes e diferentes, deixando as Forças que os perseguiam desnorteadas. E foi motivo de manchetes em jornais da época essa façanha empregada pelos cangaceiros, onde noticiaram Lampião e seus homens estarem agindo em lugares distantes e distintos, isso em jornais de cidades diferentes. Quanto às companheiras, acreditamos que o temperamento das duas era igual, faltando muito pouco para elas irem ao estremo. Maria, certa feita, condena uma cangaceira, companheira do chefe de subgrupo, o cangaceiro “Português”, que teve um ‘romance’ com o cangaceiro Gitirana, ‘cabra’ de Corisco, a morte.

Era ‘lei’ dentre os cangaceiros que se houvesse traição, a mulher traidora seria condenada a morte. Ocorreram casos do tipo. Porém, nem o cangaceiro Gitirana, nem a companheira de “Português”, a cangaceira “Cristina”, nesse caso, são condenados em princípios, coisa que só depois “Português” encomenda a morte de sua companheira, principalmente pela intervenção direta de Corisco na defesa do seu ‘cabra’. O cangaceiro “Português” não teve coragem de matar sua companheira, como ditava a regra, a cangaceira Cristina, nem tão pouco de ‘topar’ o cangaceiro “Gitirana”, pois, no momento, teria que enfrentar o “Diabo Louro”.

“(...) tratou-se do desfecho do relacionamento amoroso entre Cristina e Português. Ela o havia traído com um integrante do bando de Corisco - o cangaceiro Gitirana - e Português contratara Catingueira para “limpar sua honra maculada” (...) Maria Bonita e Lampião estavam no mesmo acampamento e, por acaso, se aproximaram deles. Maria Bonita adiantou-se, sugerindo a Catingueira que a pessoa a ser eliminada deveria ser Cristina (a verdadeira culpada, segundo ela) e, não, Gitirana. Naquela hora, Corisco retrucou: Ela deu o que era dela! Ninguém tem nada com isso! Insatisfeita com a resposta, Maria Bonita continuou defendendo a contrapartida masculina: É, mas Português vai ficar desmoralizado! Já impaciente com aquele confronto, o Diabo Louro deu um basta à discussão:

"Ele que cuide da mulher dele! Do meu rapaz, cuido eu!"

“(...) Em relação àquele desenlace amoroso, Lampião deu total apoio a Corisco. Cristina permaneceu com o bando, escondida durante alguns meses. Todavia, como era de se esperar, ela foi morta quando ia para a casa de familiares, já que Português contratara outros cangaceiros para matá-la. Neste sentido, não restava dúvidas: o adultério feminino não era tolerado nos bandos do Nordeste (...).” (VAINSENCHER, Semira Adler. Corisco. Fundação Joaquim Nabuco).

Corisco foi um dos cangaceiros, já como chefe de grupo, que fez muita bagunça por onde andou. Sua maneira de ‘tratar’ o inimigo, soldado, ou suas vítimas, com grandes requintes de crueldades, torturas, tornaram-no num grande terror nas regiões dos três Estados em que mais agiu, Bahia, Sergipe e Alagoas.

Após a morte do “Rei dos Cangaceiros”, em 28 de julho de 1938, no leito do Riacho “Angico”, na Fazenda Forquilha, no município de Poço Redondo, SE, afluente da margem direita do Rio São Francisco, seu lugar, para alguns historiadores, seria ocupado pelo chefe cangaceiro Corisco. Vejam bem, nessa época existiam vários subgrupos chefiados por diferentes chefes e, a nosso ver, qualquer um poderia assumir o comando geral, no entanto, talvez pela valentia, disposição e/ou aproximação com Lampião, muitos escritores o colocam como sendo o sucessor direto de Virgolino no comando do Cangaço.

Essa captura nos traz a imagem do caminhão que Zé Rufino usou para levar a tropa até próximo a fazenda onde matou Corisco, e depois, usou para transporta Corisco e Dadá baleados. Pertence ao acervo particular do amigo Devanier Lopes.

“(...) Essa fazenda é conhecida como fazenda Angico, porém, apenas a título de curiosidade, seus atuais proprietários, descendentes da família de Pedro de Cândido, ou seja, descendentes de D. Guilhermina, me disseram que a fazenda é registrada com o nome oficial de fazenda Forquilha (...).” (“LAMPIÃO – O CANGAÇO E SEUS SEGREDOS” – BASSETTI, José Sabino. Salto, SP, 2015)

A maneira de Corisco agir, apesar de ter tido escola militar, diferenciava-se totalmente daquela usada pelo “Rei dos Cangaceiros”, principalmente em termos de planejamento, o que era essencial para dar-se prosseguimento a existência do bando, colocando a emotividade a frente do projeto de ataque, defesa e fuga. Tanto ele, como os outros chefes, citando como exemplo, ao enviarem os famosos ‘bilhetes’ de extorsão, em vez de terem a quantia, ou parte dela enviada pela pessoa alvo, recebiam outro bilhete com desaforos e mandando irem, eles mesmos, buscarem a quantia exigida.

A verdade é que com a eliminação de Lampião, o cangaço desmorona-se ficando os cangaceiros restantes, feito baratas tontas, sem saberem o que fazerem. Nem munições sabiam onde irem buscar ou mandar que enviassem. Esse tipo de fornecedor Lampião não disse, já que ele próprio era quem fornecia, vendendo-a diretamente aos chefes dos subgrupos, pelo menos que saibamos, quem era. Documentos foram encontrados com ele, em seus espólios, porém, o conteúdo verdadeiro que continham não fora exposto ao público.



“(...) É - mais que nunca - o tempo dos ‘bilhetes’, escritos para pedir dinheiro aos mais afortunados. Contudo, estes já não têm mais o poder de outrora. Lampião está morto e quase todos os bandoleiros se entregaram à polícia. Outro tanto fugiu para lugar incerto. O proverbial ‘medo de cangaceiro’ começa a perder força por entre a população sertaneja. Os antigos coiteiros em sua maioria, já não prestam os favores dantes. O cangaço marcha célebre para o ocaso (...).” (“CORISCO – A SOMBRA DE LAMPIÃO” – DANTAS, Sérgio Augusto de S.. Natal, 2015)

O velho ditado já profetiza de que ‘quem tem, tem medo’, e referindo-se a própria vida, ou a perda dela, aí é que o arrocho cresce, então começam a entregarem-se. Não viam outra saída se não entregarem-se, e naquele momento foi à decisão mais correta que tomaram, pois, do contrário teriam tombados todos pelas balas disparadas pelas armas dos contingentes das Forças Publicas que os perseguiam. Apostaram em que se entregando tinham uma chance de sobreviverem por mais um espaço de tempo, no que acertaram em cheio.

É sabido por todos que tanto cangaceiros quanto volantes bebiam bebidas alcoólicas em demasia. Como em qualquer grupo de qualquer escala militar ou de guerrilheiros, ou ainda, de cangaceiros, há aqueles que bebem por beberem, no entanto, tem aqueles que bebem para perderem o medo, não só de matar, mas, e principalmente, de morrer. Dentre todas as camadas sociais, existem alguns que já trazem uma espécie de susceptibilidade ao alcoolismo em seus genes, e tornam-se dependentes alcoólicos crônicos, inclusive hoje, já é tido como doença crônica. Por outro lado, causas ou consequências no decorrer da vida de qualquer um, com seus altos e baixos, dependendo de como o mesmo encara essas ocorrências, a bebida torna-se um fator essencial para que, iludidos, pensem que embriagados não ‘estariam’ com seus ‘espectros’ a perturbarem-nos, usando o álcool como um meio de ‘fuga’ da realidade. Mais uma ilusão do ser humano.


Um dos mais antigos jornais do interior da Bahia. O correio do Sertão; fundado em 1927 na cidade do Morro do Chapéu Piemonte, da Chapada Diamantina. Acervo Guilherme Machado

Relatos de vários historiadores, de ex-cangaceiros e de ex-volantes, nos dizem que Corisco torna-se, a partir de determinado momento, um bebedor inveterado. O alcoolismo toma conta do seu corpo e cérebro, não o deixando tomar determinadas decisões importantes para o grupo. Com isso, sua companheira, a cangaceira Dadá, toma as rédeas de chefia e passa a comandar os ‘cabras’. Num ‘mundo’ quase que totalmente masculino, receber ordens de uma mulher, mesmo sendo a cangaceira Dadá, é demais para alguns dos homens e esses terminam por deixarem o bando. Após saírem do grupo de Corisco, alguns passam a fazerem parte de outros ou fogem do cangaço procurando as autoridades e entregam-se. E, o já pequeno grupo, diminui mais ainda.


“(...) Nas raras horas em que está sóbrio, Corisco apresenta raciocínio embotado; humor depressivo. É aí que Dadá, desnuda de qualquer cerimônia, se arvora na qualidade de chefe da falange. Assume o comando do resto do grupo sem o menor constrangimento – e sem qualquer resistência por parte do marido. Um dos cangaceiros que trabalhou para o Diabo Louro neste delicado período, em particular, ressaltaria, mais tarde, que “ela (Dadá) é que é a chefe do grupo. Dá ordens, grita, manda. E Corisco obedece-lha, sem discutir”. (José Porfírio dos Santos, o ‘Atividade II’, A Tarde, maio de 1940) (...).” (“CORISCO – A SOMBRA DE LAMPIÃO” – DANTAS, Sérgio Augusto de S.. Natal, 2015)



No dia 8 de agosto de 1939, um ano e onze dias após a morte do chefe mor do cangaço, Virgolino Ferreira, o cangaceiro Lampião, Corisco é baleado nos braços pelo soldado volante João Torquato dos Santos, que estando no momento sozinho, pois seu companheiro, o soldado Francisco Amaral, se borra de medo e dar no pé. Pois bem, além de ferir o chefe, termina por eliminar dois de seus homens, os cangaceiros “Guerreiro” e “Roxinho”, terminando tendo, também, trocado tiros com Dadá, essa, ao ter ficado com a pistola descarregada, sem munição para recarregar, agacha-se, apanha pedras e as atira no soldado, ao mesmo tempo em que empurrava seu marido, Corisco, para dentro do mato, procurando refúgio.

“(...) Surpreso se ver frente a frente com apenas um soldado. A surpresa lhe foi fatal. Havia perdido precioso tempo. O tempo necessário para João Torquato disparar a sua arma e atingi-lo, com incrível sorte, justamente nos dois braços do lendário cangaceiro (...). A companheira de Corisco, aparece, com todo esplendor de sua coragem e valentia, à frente daquele homem fardado que mais parece um demônio. Não irá abandonar o seu amado em momento tão doloroso. Irá defendê-lo até, se preciso fosse, a morte(...) atira no temível agressor. Os disparos são contínuos. João desvia sua atenção de Corisco e se vê obrigado a enfrentar a guerreira. Dadá atira sem parar. Atira e empurra o companheiro para uma baixada ali perto. As balas de sua arma acabam e a cangaceira, como se fosse uma suçuarana defendendo os seus filhotes se vale de um novo e inesperado armamento: pedras. Apanhando-as sacode-as no maldito que queria matar o seu grande amor (...).” (“LAMPIÃO ALÉM DA VERSÃO – MENTIRAS E MISTÉRIOS DE ANGICO” – COSTA, Alcino Alves. 3ª Edição. Cajazeiras, PB, 2011).

Após esse combate, Corisco, o cangaceiro não mais tem condições de lutar. Seu codinome seguira só, sem seu dono, reaparecendo Cristino Gomes da Silva Cleto, só que desta vez, cansado, mais velho e aleijado. Os ferimentos foram grandes, romperam e destruíram tecidos essências a flexão, extensão e rotação dos braços. O projétil termina rompendo vasos e atingindo músculos, nervos, tendões, ligamentos e ossos, retirando a possibilidade de movimentação nos membros superiores. Talvez até se tivesse tido uma assistência profissional, adequada, Cristino não tivesse perdido tais movimentos, no entanto, sua ‘enfermeira’, sua ‘doutora’, fora sua esposa, Dadá. Ela, em um relato, muito tempo depois, cita que até o odor era demais, nos mostrando o tamanho da infecção. Ela, com o auxílio de uma pequena faca, cortava os tecidos necrosados, mortos, fazendo uma espécie de ‘desbridamento’ forçado, retirando as partes lesadas e lesando as sãs, também retirava pedaços de ossos que a bala tinha fragmentado, fazendo os curativos na medida dos seus conhecimentos, e com o equipamento disponível, faca e punhal, usando os remédios que a natureza, através da caatinga, lhes fornecia.

A partir de então, aquele que fora tido como o maior dos terrores dos sertões baiano, alagoano e sergipano, está definitivamente fora de ação. Não tem condições de segurar uma arma para lutar. Seu, já pequeno grupo, acaba de acabar e chega a ser composto por apenas ele, sua esposa Dadá, um cangaceiro, Rio Branco, e sua companheira, a cangaceira Florência.

Cristino Gomes da Silva Cleto. vemos ele morto. prestem atenção em seus braços. e na cabeça, estava com o cabelo cortado bem baixinho.

Cristino tenta, por diversas vezes se entregar, porém, sua esposa não ‘consente’. Certa vez, até fora marcado o local de onde se entregaria, após o mesmo dizer para um comandante da Força baiana, onde estariam, ainda colocadas por Lampião, escondidas certas armas, munição e joias, mas, não fora realizado, ainda dessa vez não ocorreu à entrega do alagoano, mesmo o comandante achando a ‘botija’ e a removendo para o quartel.

“(...) o cangaceiro sustenta que teria informações valiosas sobre lugares onde estariam escondidos ‘munição, algumas armas e joias de ouro e de prata’. Uma parte desse material, segundo se fazia entender através destas cartas, era produto de assaltos. A outra teria sido escondida há muito tempo, pelo próprio Lampião (...).” (“CORISCO – A SOMBRA DE LAMPIÃO” – DANTAS, Sérgio Augusto de S.. Natal, 2015)


Já em maio de 1940, em sua segunda metade, Cristino, Sérgia, e o casal de cangaceiros, solicitam de um coiteiro, a permissão para levarem sua filha com eles, já que estavam em rota de fuga. O pai da menina, depois de ficar sabendo como sua filha seria tratada, permite que a levem. Essa foi uma estratégia usada pelo pequeno grupo, um cangaceiro, duas mulheres e um aleijado, para melhor despistar os perseguidores, já que todos sabiam que cangaceiros não andavam com crianças. Trocam de nomes, ensinam como a menina deveria chama-los e danam-se de Bahia adentro, em busca da liberdade.

Essa criança é a adolescente Josefa Erundina de Almeida, chamada por todos de ‘Zefinha’. Filha de um antigo coiteiro de Corisco, Braz Francisco de Almeida, alcunhado por ‘Braz dos Couros’, que morava no município de Bebedouro.

“(...) Então, o antigo lugar- tenente de Lampião propõe ao curtidor de couros:

- “Braz, quer me dar essa menina? Eu levo ela comigo para Bahia!”

O curtidor pensou um pouco e falou:

- “Se o senhor garantir que leva a menina para Bahia e bota nos estudos, eu dou. Porque, aqui, não posso dar a educação precisa a ela” (...).” (“CORISCO – A SOMBRA DE LAMPIÃO” – DANTAS, Sérgio Augusto de S.. Natal, 2015)

Vemos que não ocorreu o tão famoso sequestro que tanto fora divulgado pela própria imprensa. A fonte citada divulga uma espécie de ‘adoção’ feita pelo casal Cristino e Dadá, onde estariam de acordo os pais da criança.

A cabeça do cangaceiro Corisco, Cristino Gomes da Silva Cleto. após alguns dias do seu enterro, sua cabeça é decepada e enviada para o instituto Nina Rodrigues em Salvador, capital baiana. Com o tempo em que estava enterrado, seu corpo já havia entrado em fase de putrefação. devido a isso, ficou com uma deformidade maior do que as contidas nas cabeças dos outros cangaceiros que foram enviadas para o mesmo instituto.

Um dos ‘cabras’ do grupo que debandaram, José Porfírio dos Santos, o cangaceiro Velocidade II, ao entregar-se as autoridades, é interrogado. Nas revelações que faz, ele diz que seu chefe não se entrega por que sua esposa não permite. Ainda mostra o suposto ‘roteiro’ que pretendia fazer o pequeno grupo, além de contar como estava fisicamente o cangaceiro “Corisco”, ou seja, dedurou que ele estava aleijado, sem condições de lutar.



De posse no relato do depoimento do cangaceiro que entregara-se, o Jornal A Tarde publica, isso, já em maio de 1940:

“Inutilizado, incapaz de lutar, Corisco foge ameaçado de morrer, se tentar abandonar o banditismo. Triste sorte esta para o antigo lugar-tenente de Lampião.”

O tenente Zé Rufino, sempre citado que fora o maior estrategista dentre os comandantes das volantes por vários pesquisadores, o que realmente fora, pois sua tropa foi quem mais matou cangaceiros, está a muitas léguas de distância desse grupo em fuga. Mesmo assim, resolve, segundo ele mesmo por ordens superiores, saírem em sua pista. Em termos de estrategista, o comandante Zé Rufino se equipara aos estratagemas de Lampião. Ele, como cita o antigo ditado, ’não colocava a mão em cumbuca, sem saber o que tinha dentro’. Antes de qualquer ataque aos bandos que enfrentou, analisava o terreno, para depois atacar, dava contraordens durante o conflito, dependendo da situação e procurava, minuciosamente, detalhes após a luta. assililando conhecimentos para os próximos confrontos. No entanto, ele envia aos superiores que o ordenaram a caçada, os capitães Felipe Borges e Rehen, um telegrama da cidade baiana de Djalma Dutra, tendo a certeza do encontro e da vitória diante dos fugitivos.

Ao pesquisarmos outras informações prestadas pelo tenente Osório aos seus superiores, anteriores a essa perseguição, jamais nos deparamos com ‘tanta certeza’ quanto ao resultado do que viria, ou estava para acontecer nessa feita ao cangaceiro “Corisco”. Esse detalhe só nos vem ‘dizer’ o quanto se sabia da incapacidade de Cristino lutar. Ficando mais fácil enfrentar duas mulheres e um só homem, o cangaceiro Rio Branco, jovem com 19 anos sem experiência em lutas.

Andaram muito tempo a pé, romperam distâncias a cavalo e, por fim, encurtaram a distância em cima de um caminhão. Vários dias depois, já na tarde do dia 25 de maio de 1940, estão diante de um dos casais em fuga, o outro correu e não foram perseguidos, abrindo um enigma muito grande, a nosso ver, pelo deixar pra lá, se era um casal cangaceiro. Na verdade, a meta de Zé Rufino seria apenas e somente Cristino? Pois só vemos alguma notícia de perseguir o outro cangaceiro, no mês de junho daquele ano.

Jornais citam o ocorrido em tudo que é lugar. Na Capital do país, como sempre, a imprensa prioriza o ‘confronto’ que resultou na morte do sucessor de Lampião.

O jornal O Estado da Bahia, relata, em sua matéria de 1º de junho de 1940, como ocorreram os fatos no ‘combate’ onde tombou o ‘Diabo Louro”.

“E saltando pela porta dos fundos enquanto atirava com um enorme parabélum, Corisco logo seguido pela sua mulher, que também fazia fogo correu para o mato (...).” (Transcrito) (“Fim do Cangaço: As Entregas” – BONFIM, Luiz F. de A. Paulo Afonso, 2015).

Dadá

Nesse trecho da notícia, o jornal tenta mostrar um homem em condições de lutar. No trecho seguinte, também notamos essa ‘intenção’, vejamos:

“O bandido não parava. Vez por outra, virava-se rápido, descarregando seu Parabélum, e a sua figura hercúlea, com os cabelos louros, soltos ao vento, bem justificava o apelido que o povo lhe deu.

Era o Diabo Louro em ação.” (Transcrito) ("Fim do Cangaço: As Entregas” – BONFIM, Luiz F. de A. Paulo Afonso, 2015)

Além de outros equívocos, o maior seria dizer que estava com os cabelos longos, não sendo verdade, pois o mesmo tinha mando cortar os cabelos, que não eram louros, e sim, ruivos. Notamos que seus cabelos estão curtos, quando vemos a foto dele morto.

Vejam bem, nos dois trechos mostrados, cita que ele atirava com seu Parabélium. Pois bem, vejam no seguinte, em qual das mãos ele segurava a arma e atirava, além de recarregar, pois se descarregou, tem que recarregar se não, não atira, é citado:

“A uns dez metros de distância, o tenente Rufino viu que Corisco fora baleado no braço direito, deixando cair a arma e gritou-lhe outra vez: - Se entrega Corisco! (Transcrito) "(“Fim do Cangaço: As Entregas” – BONFIM, Luiz F. de A. Paulo Afonso, 2015)

Ora, o braço direito de Cristino deste há vários meses, agosto de 1939, que não servia nem para ele pegar numa colher e comer. Alguns autores ainda citam que ele conseguia, com muito esforço, segurar uma pistola com a mão esquerda, mesmo sendo, segurar é uma coisa, manejar e atirar é outra totalmente diferente. Quanto mais saltar uma porta, correr, atirar e recarregar a pistola? Totalmente sem lógica.


Não sabemos se realmente ele garantiu a vida de Cristino quando estavam naquela fazenda, depois relatando que Cristino diz: “Estou satisfeito, sou homem pra morrer e não para me entregar”. Esse dizer do militar não seria uma maneira de esconder, ou desviar a atenção da população, sobre a covardia de matar um homem que não tinha condições de lutar? Para nós aparece uma ‘cachoeira’ de porquês: Será que sua intenção não era no ouro, nas joias ou no dinheiro que supunha levassem os cangaceiros? Com certeza Zé Rufino sabia que o que fora arrecadado nos espólios dos cangaceiros mortos em Angico, em 1938, fora uma soma bastante elevada, e como sendo Cristino o sucessor direto de Lampião, segundo a própria imprensa, também teria uma enorme soma, então daria de qualquer jeito o bote, mas, apenas com a intenção nos espólios? Por que o comandante não autorizou aos homens deceparem a cabeça do cangaceiro, ato costumeiro que lhe fez famoso e o ajudou a galgar diversas patentes militares? Teria sido o temor de um castigo por cortar, ou ordenar cortarem, a cabeça de um aleijado?


Zé Rufino, em seu leito de morte, muito tempo depois daquela tarde de maio de 1940, manda chamar Dadá e pedi-lhe perdão. Esse pedido teria vindo através de qual ‘pecado’? Só pede-se perdão quando se peca. Será que não fora a consciência pesada por ter matado uma pessoa que não tinha condições físicas de segurar em suas mãos uma pistola, nem tão pouco um fuzil, mesmo sendo Corisco?

Para nós, não ocorreu luta, e sim um assassinato. A tropa que assassinou Cristino era entre 14 e 15 homens, no mínimo, esses homens não tinham a força e coragem de pegar no braço um aleijado? Eles abriram foi fogo ao comando direto do comandante, resultando na morte de um renomado cangaceiro cruel e assassino, porém, na oportunidade, aquela pessoa só tinha o nome, impossibilitado de lutar. Porém, não somos donos da verdades, apenas expomos o resultado do confronto sobre pesquisas bibliográficas,ficando ao entender de cada um com a sua interpretação.


Fotos
Benjamim Abrahão
“Fim do Cangaço: As Entregas” – BONFIM, Luiz F. de A. Paulo Afonso, 2015
Acervo Sergio Dantas
Acervo de Devanier Lopes
Acervo Robério Santos

O cangaço em Floresta,PE

A rua dos Coiteiros

Por Sálvio Siqueira, "Grupo Ofício das Espingardas"

Naquele tempo, para sobreviver às inúmeras perseguições das volantes, Lampião arquitetou uma enorme e eficiente ‘malha’, rede, de colaboradores. Essa rede se fazia necessário para aquisição de material bélico, alimentação, vestimentas e, o mais importante, informações. Que, vira e mexe, O “Rei dos Cangaceiros” usava os ‘informantes’ para passarem a ‘desinformação’. Uma espécie de espionagem e contra espionagem na caatinga sertaneja.

O roceiro tinha que ser coiteiro, não simplesmente por ser. Havia o medo do que poderia lhe ocorrer, assim como a sua família, se se recusa ser colaborador. Tinha lá suas vantagens em ser colaborador do ‘Capitão’. A vida não era, e não é fácil para quem vive exclusivamente dos produtos retirados das pequenas propriedades. Pior ainda, quando o mesmo com sua família, era morador de uma fazenda. Às vezes o dono sabia, consentia e mandava seu ‘morador’ acolher e alimentar os grupos quando por suas terras passavam. Outra era só o colaborador quem sabia da passagem e estada deles naquelas brenhas.

A partir do momento em que ele matava a sede e a fome de algum cangaceiro, leva ou trazia algum recado, passava a ser colaborador, mesmo que nunca mais se repetisse esses atos. Aí vinha a dureza imposta por aqueles que os perseguiam, por ele ter dado água aos cangaceiros, eram, quando descobertos, presos, maltratados e até assassinados. No entanto, haviam aqueles que colaboravam por recompensas em dinheiro, favores e proteção, dependendo da sua colocação na pirâmide de colaboradores, se estavam na base, no meio ou no topo da mesma.

Certa feita, uma volante comandada pelo Anspeçada Sinhozinho, Manoel Gomes de Sá, rastreava os sinais deixados por dois cangaceiros, que tinham estuprado uma mulher em uma fazenda da região, no leito e margens de um riacho temporário no sertão do Pajeú. Próximo às margens dos riachos e rios, era o local preferido onde os sertanejos procuravam levantarem suas taperas para morarem.

Entretidos em decifrar e seguir o que os sinais ‘diziam’, os homens da volante nem percebem que estavam bem perto de uma casa.

Na casa, os dois foragidos, cangaceiros Zé Marinheiro e Sabiá, tinham matado sua sede e estavam a prosear embaixo de uma latada, quando, de repente, o dono da casa e sua esposa avisam aos dois da aproximação de soldados. Acredito que os cangaceiros que ali estavam, pensaram serem poucos os homens em seus rastros, pois um deles, Zé Marinho, faz pontaria e abre fogo contra aquele que estava na linha de tiro.



O som do disparo, repentino àquelas horas e naquele silêncio da mata, não deixa os soldados atinarem o ponto correto de onde tinha partido o mesmo. O tiro teve endereço certo. Acertou o ouvido do militar e esse morre mesmo antes de chocar-se contra o solo seco do sertão. Demorados alguns instantes, a volante, já consciente do que ocorrera, manda bala em direção oposta de onde viera o disparo.

Embaixo da latada onde estavam os cangaceiros, havia um pilão de madeira, e após matar o soldado, é exatamente onde o cangaceiro Zé Marinheiro se protege dos disparos dos soldados, os quais retiram lascas da madeira e fazem o cabra escutar o zunido do projétil tomando outra direção, ou mesmo aquelas que penetram e se alojam no velho objeto de pilar milho e outras culturas.

Vendo o companheiro tombado, seus companheiros procuram cercar o local o mais fechado e rápido que poderiam. Aquele que matara seu companheiro não podia escapar da sua sentença. E acocham cada vez mais o círculo da morte. Vendo que estavam cercados, os dois cabras pulam para dentro da casa do roceiro, e, de lá, dão combate a volante.

 Essa casa era d’um caboclo trabalhador, conhecido como Garapu. Casado com dona Carmina, geraram oito herdeiros. Quando os cangaceiros adentram na casa, sua companheira procura proteger sete, de seus filhos, colocando-os em lugar seguro. O caboclo tinha algum dinheiro, provavelmente ganho dos cangaceiros, pega seu ‘tesouro’ e o coloca entre uma telha e outra. Essa ação não passa despercebida por sua esposa, que naquela hora, lembra-se de seu primogênito que tinha ido fazer compras na vizinhança. O filho mais velho daquele casal estava mais perto do que ela, sua mãe, imaginava.

Viajando montado em uma burra, já na volta de sua viagem, escuta o tiroteio vindo das bandas de sua casa. Salta do animal e procura uma moita como esconderijo, vendo o que se passava com sua família. Soldados atacam, cangaceiros se defendem. Num momento infeliz, o comandante da volante passa diante de uma das janelas da casa, e, nessa estava o cangaceiro Sabiá, que sem demora, faz mira e abre fogo contra ele. O tiro e certeiro, levando a mais uma baixa na volante. Após a morte do comandante, vários de seus comandados não conseguem segurar o fogo. Dentre eles, estava o soldado Zé Tinteiro, valente e destemido, segura seu fuzil e combate os inimigos com maior afinco.

Outro volante, Zé Freire, homem de um Santo Protetor fora do comum, estava tiroteando contra Zé Marinheiro. Esse, salta por sobre a porta de baixo, as portas da maioria das casas do sertão rural e mesmo nas cidades, naquela época, eram em duas partes e de madeira, e avança, ficando a centímetros de Zé Freire. Aponta a arma e aperta o gatilho. À bala impina, a espoleta não ‘quebra’, a arma não dispara. Zé Freire, quase que encosta a boca do fuzil na cabeça do cabra e faz fogo, estourando o crânio de Zé Marinheiro.


Seu companheiro, o cangaceiro Sabiá, continua a combater os soldados, virado numa fera ferida. Numa tentativa de louco, salta para fora da casa e nesse momento e atingido na barriga e em uma das pernas. Continuando a combater os soldados bolando pelo terreiro da casa. Até que os dois valentes volantes se aproximam e matam o terrível cangaceiro.

Após abater os cangaceiros, a tropa aproxima-se da casa e o soldado Zé Freire grita para que o dono saia para o terreiro... para morrer.

“(...) o soldado Zé Freire, revoltado com a morte do Aspençada Sinhozinho Gomes e dos outros dois companheiros, gritou para Garapu, dizendo: – Saia pra fora, Garapu. Você tá sabendo que vai morrer (...).”

(“AS CRUZES DO CANGAÇO – Os fatos e personagens de Floresta-PE” – SÁ, Marcos Antônio de. e FERRAZ, Cristiano Luiz Feitosa. Floresta, PE. 2016)

O coiteiro sabia sim sua sentença. Sabia que por ajudar bandidos seria condenado a morte certa. Estando dentro de um quarto, com sua esposa e os sete filhos, Garapu despede-se deles, saca de uma faca peixeira e parte de encontro a morte. Desfere um golpe em direção ao soldado que havia lhe inquirido, errando o alvo. O soldado Zé Feire, afasta-se para um lado e mata a tiros de revólver o coiteiro.

“(...) Com a morte de Garapu, Carmina teve que lutar sozinha para criar os filhos, lavando roupas de vizinhos, costurando e cuidando da lavoura(...).” (Ob. Ct.)

Dona Carmina, na época do tiroteio em sua casa, estava grávida. Alguns meses depois, pariu uma menina a qual deu o nome de Nair Carmina da Silva. Logicamente, essa, nunca soube o que é ter um pai, seus afagos e conselhos.

Os corpos dos militares mortos são levados pelo restante da tropa para seu QG. O corpo do caboclo Garapu e dos dois cangaceiros, Zé Marinheiro e Sabiá, são enterrados em uma vala comum bem próximo a casa.

As notícias voam com o vento. E aquela história da morte do caboclo Garapu se espalhou por toda a região do vale do Pajeú. Outros coiteiros, temendo a mesma sina, arrumam suas tralhas em cima de carro de bois, no lombo de animais e dão no pé. Na cidade de Floresta, PE, na rua Theófhanes Ferraz Torres, os fazendeiros “Manoel Januário, Rosendo Januário e Elói Januário", colaboradores de Lampião, estabelecem residência. A partir daí, essa rua passa a ser conhecida como “A Rua dos Coiteiros”, até os dias de hoje.




Fonte (“AS CRUZES DO CANGAÇO – Os fatos e personagens de Floresta-PE” – SÁ, Marcos Antônio de Sá - Marcos De Carmelita e FERRAZ, Cristiano Luiz Feitosa -Cristiano Ferraz. Floresta, PE. 2016). Foto Ob. Ct.