sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Zabelê

O velho cangaceiro ainda se lembra: Naquele tempo, só Deus não se ajeitava.

*Texto de Claudio Bojunga, para o jornal “O ESTADO DE SÃO PAULO” – 31/07/73



Um velho entrevado, torto, de 73 anos, tossindo, mal vestido, deve estar muito doente. Só os olhos são ágeis como os olhos de um menino: correm em torno da mesa, encara rapidamente as pessoas para depois se fixar na janela à esquerda, na porta aberta à direita; os olhos de Zabelê, mais de 40 anos depois, conservam a vigilância dos tempos do cangaço. E como se, a qualquer momento, um macaco fosse pular à sua frente ou às suas costas para enchê-lo de bala.

Zabelê, ou Isaias Vieira, um homem totalmente apavorado. É um exemplo dos cangaceiros que, depois da luta, ficaram por aqui mesmo, no Nordeste. Há muitos em todo o sertão, de Alagoas ao Ceará, todos escondidos sob nomes falsos. E eles sabem que não temem fantasmas. A vingança, no sertão, é elaborada com paciência chinesa. É possível, perfeitamente possível que, a qualquer momento, amanhã talvez, um outro velho entrevado descarregue seu revólver sobre o velho Zabelê. Afinal, Zabelê nem sabe quantos matou em um ano de cangaço. Era coiteiro de Lampião desde 1923, na região do Pajeú, até que o coito se tornou evidente demais, e perigoso. Olhando de um lado para outro enquanto fala, o velho conta:
- Lampião: tá descoberto que eu compro coisinha procê. Tô enroscado. Se não sentá praça vou acabar entre as pernas do tenente.
Lampião pensou um pouco. Não era qualquer coiteiro que podia “sentar praça” no cangaço. Zabelê insistiu:
- Tô desmantelado. Sou pai de família, tó desmantelado.
-Desmantelado você já nasceu.
E dito isso, Lampião aceitava um novo “soldado”. Porque era preciso estar mesmo muito “desmantelado” na vida para topar a parada. Zabelê tinha mulher, quatro filhos e muito azar.
Começou a brigar em 1926 e um ano depois estava preso. Participou de um combate importante, o de Serra Grande, naquele mesmo sertão. Como todo ex-cangaceiro, diz que, naquela batalha, morreram uns 30 macacos. Cangaceiro, nenhum. O mesmo truque usado pelos policiais da época. Vários dizem que em Serra Grande morreram um ou dois soldados. O coronel Higino José Belarmino, famoso entre outras coisas por não mentir, nem que a verdade possa “prejudicar” a imagem da Volante, diz que morreram dez soldados em Serra Grande. Cangaceiros, ele não sabe, ninguém sabe.

Isaias Vieira, o primeiro  “Zabelê”  cumpriu longa pena na penitenciária do Recife. Esta foto é de 29 de dezembro de 1928, quando ainda se encontrava preso.
Foto do Acervo Lampião Aceso, não compõe a matéria original.

Os cangaceiros sempre carregavam os seus mortos e feridos e os eternizavam, batizando um cabra novo com o nome do preso ou do morto: assim, este que apavorado conversa com a gente, é o primeiro Zabelê de uma série. Um toque de misticismo, nem tanto para confundir a polícia, mas o povo. O cangaceiro não morre. Zabelê está preso? Como, olha ele aqui.
Apesar do pavor, Zabelê I ainda ousa revelar, com seu raciocínio lógico de sertanejo, que tudo não se resume a troca de tiros entre grupos ou requintes de crueldade. Até Zabelê, personagem de mínima importância dentro daquela fase da História do Brasil, sabe o que significa corrupção.
"Todo mundo ajeitava. O senhor pode ser naquela época o presidente da nação, ajeitava também. Naquela época só quem não ajeitava era Deus que não aparecia".
Ele quer dizer que grande parte das armas do cangaço foi vendida pela própria polícia que importantes políticos da época, hoje venerandos e com estátua (algumas equestres) no meio das praças, estiveram envolvidos gravemente, pairando sua honra sobre os tiroteios que eles próprios manipulavam.
Zabelê: apavorado, velho, doente, pobre e atualizadíssimo.
*Créditos para Antônio Corrêa Sobrinho

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