terça-feira, 18 de setembro de 2012

Relíquias do Cangaço

Uma oferenda de apetrechos 
Cobiçados por colecionadores, os objetos do grupo do cangaceiro Lampião foram disputados por autoridades políticas e intelectuais

Por: Davi Roberto Bandeira da Silva,
para a Revista Leituras da História, Edição 52 - Agosto de 2012.



O hábito de organizar coleções de objetos de arte, raros ou exóticos, ou de amostras reunidas por curiosidade científica era comum na Grécia e Roma antigas, segundo referências que se estendem de Homero (século 9 a.C.) ao ano 125 da Era Cristã, quando morreu Plutarco. Logo, as coleções se formavam a partir da época helenística, e daí passaram à Roma do fim da República e do Império. Portanto, é bastante remoto o gosto de colecionar, especialmente com a preocupação de guardar o testemunho do passado, em que pudessem ser admiradas e estudadas as coleções de objetos históricos.

A morte do cangaceiro Lampião (1898-1938) é um assunto polêmico. Para alguns, revestido de grande complexidade, de inimagináveis controvérsias. Fato é que o ataque, em 28 de julho de 1938, da tropa do 2º Batalhão Policial Militar de Alagoas ao esconderijo Angico, sertão de Sergipe, onde descansavam Lampião, Maria Bonita (1910-1938) e toda a patota, liquidou 11 cangaceiros no confronto - se é que houve realmente confronto. Mas qual o destino dos objetos que estavam com os cangaceiros derrotados em Angico?

Após a refrega, o jornalista alagoano e redator do periódico carioca A Noite, Melchiades da Rocha (1899-1996), relata no livro Bandoleiros das Catingas as "verdadeiras obras de arte" que "a polícia alagoana arrecadou na Grota de Angicos". Tratava-se dos "apetrechos e material de guerra que se encontravam nas barracas do rústico acampamento do Rei do Cangaço". Algumas dessas peças se encontram, hoje, no Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, em Maceió, uma vez que seu acervo reúne objetos e documentos dos mais valiosos subsídios autênticos, de valor indefinível, dos acontecimentos que envolveram as volantes e os grupos de cangaceiros no sertão alagoano.

O referido acervo é constituído por óculos, punhal, cartucheira, chapéu, cantil, armaria, mochilas, alpercata, colchas, além de uma moldagem da cabeça de Lampião. Além disso, o acervo possui fotografias, processos jurídicos e diversos bilhetes redigidos por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e seus livrinhos de oração.

A doação ao Instituto Histórico de Alagoas dos objetos recolhidos após o combate em Angico foi realizada por ordem do interventor Osman Loureiro (1895-1979), por meio do ofício nº 1521, datado de 29 de novembro de 1938, em Maceió, assinado por José Maria Correia das Neves (1886-1953), então secretário do Interior, Educação e Saúde do Estado de Alagoas. O aviso da oferenda dos "trophéos pertencentes ao celerado Virgulino" - palavras de Correia das Neves - mereceu espaço nas atas das reuniões da instituição cultural.

 Artista plástico Lourenço Peixoto

  
Presidente Getúlio Vargas e o interventor Osman Loureiro em Maceió


Despojos do Cangaço

O jornalista Melchiades da Rocha teve influência direta no manejo dessas peças, inclusive, cabendo a ele a responsabilidade de "trazer os referidos objetos ao Rio e levá-los depois a Maceió". Inicialmente, após terem chegado a Maceió, trazidas do esconderijo Angico, as peças ficaram expostas no Rio de Janeiro em um esforço de "proporcionar à população carioca a excelente oportunidade de tão interessante exposição", salientou Melchiades. Até o ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema (1900-1985), reforçou junto ao governo alagoano o pedido de envio dos "trophéos" para o Rio, justificando a aquisição dos "objetos encontrados entre os despojos do grupo do cangaceiro Lampião e que apresentam interesse do ponto de vista da Etnographia e da arte popular".

O Lampião do Instituto Histórico

Santinho da primeira comunhão que pertencia a Lampião

Vestido e chapéu que pertenceram a Maria Bonita

Atendeu ao pedido do nobre ministro o interventor alagoano Osman Loureiro, no envio dos apetrechos, entretanto, a imprensa alagoana alertava em suas manchetes que "após a exposição, os troféus voltarão para Maceió, para que lhe seja dado o destino que se resolver". Seguindo no navio Itanagé, em 12 de agosto de 1938, com destino ao Rio de Janeiro, Melchiades da Rocha levou consigo os referidos "trophéos" para serem exibidos ao público carioca.

Por sua vez, em reunião no Instituto Histórico, em 11 de agosto de 1938, o presidente Orlando Araújo (1882-1953) agradeceu aos sócios Paulino Santiago, Ezechias da Rocha e Théo Brandão "pelo desempenho cabal da missão que lhes fora confiada, de conseguir para o Instituto a maquete da cabeça e a indumentária do famoso Lampião". Em encontro posterior, o secretário perpétuo Luiz Lavenère (1868-1966) informa que "pedira ao governo do Estado que entregasse ao Instituto a guarda dos objetos que pertenceram ao célebre cangaceiro, obtendo promessa favorável ao seu apelo, o que o levou a estranhar que tais objetos estejam sendo exibidos pelo jornal A Noite, do Rio". Mas o apelo do sócio foi atendido, conforme atesta em ofício dirigido ao instituto, no qual o interventor Osman Loureiro se manifestou "anunciando haver providenciado o retorno a esta Capital dos troféus do bando de Lampião".

Orlando Araújo
In:História de Alagoas

Na capital Maceió, aliás, corriam as primeiras notícias a respeito da modelagem da cabeça de Lampião, pode-se dizer, executada com esmero pelo escultor Lourenço Peixoto (1897-1986). Na edição concernente ao dia 6 de agosto de 1938, o Jornal de Alagoas registraria aos leitores que "por solicitação do Instituto Histórico de Alagoas, o professor Lourenço Peixoto está modelando em gesso a máscara de Lampião". Segundo o noticiário, pretendia o "Instituto Histórico reconstituir a figura do 'Rei do Cangaço', nos mesmos moldes como se pratica nos museus antropológicos".

Entretanto, Lourenço Peixoto executou seu trabalho artístico bem antes que o professor Arnaldo Silveira, docente da renomada Faculdade de Medicina da Bahia, fizesse o traslado para Salvador apenas das cabeças de Lampião e Maria Bonita. Enquanto isso, Lavenère, em um resmungo descabido, quis apressar o regresso dos objetos dos cangaceiros a Alagoas, talvez receoso de que pudessem permanecer no Rio de Janeiro, por causa da prontidão com que o interventor atendia aos pedidos dos interessados.

E assim, o Diário Oficial do Estado publicou, em 1º de dezembro de 1938, o mencionado ofício nº 1.521 ofertando os objetos ao Instituto Histórico, discriminados em inventário conforme o script. Ao mesmo tempo em que as reuniões na entidade cultural aconteciam quase vazias, pelo diminuto número de sócios presentes, por outro lado, a exibição dos objetos capturados em Angico adornava as vitrinas do museu, atraindo os olhares de jornalistas, letrados e autoridades.

Estado atual das peças de Lampião 
expostos no Museu do Instituto Histórico de Alagoas.


Espólio causou intriga estadual

Ao entardecer do longínquo maio de 1939, quando uma comitiva, encabeçada pelo secretário Luiz Lavenère, visitava o museu do Instituto Histórico, por um descuido, notou-se o sumiço de dois objetos pertencentes a Lampião. O desaparecimento logo provocou vozerio. A correria e um sentimento de urgência atingiram o esguio Lavenère. Diante desse incômodo, talvez rememorando o empenho em que pôde triunfar após a conquista na captura dos objetos - que tudo isso, decerto, seria a maior das vaidades -, fragilizou-se o destemido secretário.

Preocupado com o fato - ou melhor, o furto -, o próprio Lavenère, na sessão ordinária de 31 de maio de 1939, pedindo para constar na ata "ad perpetuam rei memoriam (para perpétua lembrança)", solicitou o registro do "desaparecimento de dois anéis que pertenceram a Lampião, fato ocorrido por ocasião da visita que o exmo. sr. interventor do Rio Grande do Norte e seu secretário fizeram ao instituto". Os objetos desaparecidos, provavelmente, seriam as seguintes peças: um anel de ouro com as iniciais na parte exterior C.V.L. e uma aliança de ouro com a inscrição "Capitão Lampião", na parte interna, conforme descreve o inventário.

Como em qualquer coleção, o que não faltam são vestígios dispersos e, recuperar a sua história é, no mínimo, revelador. Do rico acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, uma peça se destaca, particularmente, pela cadente história de como ali fora identificada: o vestido de Maria Bonita. Consta nos arquivos do museu que "o vestido de Maria Bonita foi, de certa forma, 'esquecido' ao longo do tempo". Mas este "esquecimento" durou somente até o momento em que um pesquisador, aficionado pelo cangacismo, procurou a instituição. Ele indagou sobre ali se encontrar a peça pertencente à baiana Maria de Déa ou simplesmente Maria Gomes Oliveira - nome de nascimento de Maria Bonita (1910-1938) -, que "teria sido doada ao museu nos anos 70".

Volante alagoana que derrotou Lampião
Segundo os registros, o pesquisador "tinha informações precisas e descreveu a peça em detalhes", desencadeando o "procura daqui, procura dali, [até que] o vestido foi identificado. Salvo do esquecimento, passou [finalmente] a constituir uma relíquia" do acervo, o vistoso objeto da mulher que perambulava sertão adentro. A doação do vestido foi feita pela atriz Nádia Maria, cujos familiares o receberam por meio do jornalista Melchiades da Rocha, o qual, por sua vez, foi agraciado pela oferta da vestimenta por intermédio do aspirante Francisco Ferreira Melo, da Polícia de Alagoas.

Com vistas à preservação da memória regional, essas peças que constituem um expressivo valor histórico, como resgate de uma época marcada pelo banditismo, continuam a provocar reflexões sobre as possibilidades e direções relativas aos estudos de nossa formação e identidade. São fragmentos de uma natureza simbólica num encontro imaginário, nos quais a memória preservada ocupa espaço nos dias atuais, em uma época em que as lições do passado são tragadas pelo esquecimento.

Destino inglório, na vitrina que atenua a luminosidade no Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, onde assentam vestígios materiais do cangaço, não para reverência, mas somente ressoando os ecos da história.

Cangaceiro Venerado

Na trajetória de vida de Lampião há muitas contradições e muita imaginação. Nem poderia ser diferente. De bandido e facínora a "herói" e defensor dos pobres, há de tudo nas definições populares dessa personagem histórica. Inclusive em setores da sociedade, a partir de tentativas de recuperar a memória de quem sacrificou apavoradas vítimas e empreendeu audaciosos assaltos.

Pode-se destacar que o interesse pelos embates entre perseguidos e perseguidores do ciclo do cangaço (como é denominado o banditismo no Nordeste brasileiro) ainda é intenso neste início do século 21. Há uma imensa quantidade de trabalhos literários, históricos e jornalísticos (artigos e livros) sendo produzidos. Da mesma forma, esforços constantes são realizados por diversos setores sociais, no sentido de se perpetuar a memória dos fatos históricos, envolvendo os impetuosos embates entre os cangaceiros e as forças volantes. Nesse caso, é possível dimensionar tais esforços por meio dos seguintes aspectos envolvidos nas suas representações, com referência, a Lampião: danças folclóricas lhe facultam homenagens em solenidades; exposições exibem fotos, vídeos, objetos e matérias jornalísticas a seu respeito; promovem-se encontros mobilizando acadêmicos, diletantes e estudiosos (constantemente homenageados e adulados) para debater seus feitos considerados audaciosos, enquanto missas campais lhe são endereçadas - tão convenientes à indisfarçável vaidade

Visite
Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas
Rua do Sol, 382. Centro - Maceió/AL - Tel.: (82) 3326-9719 E-mail: ihgal@hotmail.com

Saiba +

BONFIM, Luiz Ruben F. de A. Notícias sobre a morte de Lampião. Paulo Afonso: Graftech, 2010.
DANTAS, Sérgio Augusto de Souza. Lampião entre a espada e a Lei: considerações biográficas e análise crítica. Natal: Cartgraf, 2008.
JASMIN, Élise. Lampião, senhor do sertão: vidas e mortes de um cangaceiro. São Paulo: Edusp, 2006.
MELLO, Frederico Pernambucano de. Estrelas de couro: a estética do cangaço. São Paulo: Escrituras Editora, 2010.
ROCHA, Melchiades da. Bandoleiros das caatingas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1988.

* Davi Roberto Bandeira da Silva é pesquisador do Programa de Estudos de Administração Brasileira da Universidade Federal Fluminense.

Pesquei em: Portal Ciência e Vida

5 comentários:

Unknown disse...

A cada dia mais fâ desse blog.
Parabéns e abraços.

Kiko Monteiro disse...

Obrigado Beijamim! Sua atenção e seu elogio é o incentivo, ou diria, o gás que mantém o pavio aceso.

Abraçando!

Astério Loureiro Junior disse...

Em 1938, Osman Loureiro não era interventor, pois tinha sido eleito pelo voto em 1935, tornando-se governador eleito

Unknown disse...

Obrigado por estas informações. Assim que puder irei a Maceió principalmente para conhecer o museu!

Anônimo disse...

Amo história e estou impressionado com tantas riquezas nelas.