quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Culminando com a Missa de 7º dia

João Gomes, Lira que inspira e eleva

Por Aroldo Ferreira*

O cangaço, com suas expansões e reinvenções, possui seus mitos, contribui para um entendimento maior do Sertão, influi na dinâmica de nossas sensações e repercussões dos carrascais, dilui o tempo em nós mesmos, traz atemporalidades, constatações, dúvidas, conceitos, indeterminações.

No chão adusto e aduno aunado de macambiras e marmeleiros, cangaceiros percorriam distâncias variadas, corriam das Volantes, dos próprios fantasmas. Combatê-los, detê-los, vencê-los era tarefa indigesta, gesta de percepções inusitadas, atadas a senões e agouros, estouros de parabéluns e fuzis, vindouros momentos carregados de tensões e temeridades, distorções e desentendimentos.

Os lutos, abruptos, eram comuns. Os vultos, em insultos variados, varriam veios e vaus, vociferavam, vinham de vinditas e vazios, vertiam escuridões e temores.Comungava-se de receios e aperreios, constatava-se a precariedade da justiça, o apego à terra do catingueiro, a falta de estradas, o ensino ainda por se tornar revelador, questionador.

O Sertão era os grandes espaços, os traços de seus rios temporários, a mistura da lonjura com a dura realidade de uma época de textura obscura, insegura, saracura cantando e anunciando agruras, sepulturas. Viviam-se preocupações, ocupações determinadas pela ausência de perspectivas naquele mundo ressequido, colhido por solavancos e surpresas desiguais.

Os cangaceiros atormentavam, fomentavam instabilidades, debilidades constantes. Errantes, penetrantes, farfalhantes, apareciam e teciam dores, clamores, suores enviesados. Conduziam-se ferindo corpos, percepções. Habitavam as descontinuidades, as perplexidades.

João Gomes de Lira, morto há poucos dias, possuía a memória de quem, sendo perseguidor de cangaceiros, compreendeu suas cruas insinuações, seus breus e alucinações. Nazareno, sereno, conversava compactuando de cadências e coerências, conservava concepções claras, conhecia a força dos umbuzeiros e facheiros, das umburanas e umburuçus, das quixabeiras e catingueiras no universo sertanejo. Penetrou, ainda jovem, na participação de lutas incansáveis, testemunhou a morte de parentes, combatentes valentes, vivenciou as circunstâncias alucinatórias e vexatórias do cangaço. Foi um guerreiro na busca de uma afirmação de seus propósitos e sonhos, conheceu o peso das fatalidades, o intrincado movimento dos cangaceiros no solo sagrado do Sertão.

João Gomes some da face da terra, mas não de nossas almas, continua a espalhar sua canção de cordialidade e humildade, nos mostra que a vida, com sua fragilidade e efemeridade, constrói destinos nobres, abertos aos grandes vôos, aos entôos das peiticas e das seriemas, às percepções gentis, unidas a singularidades e vastidões.

O tenente João e o autor desta homenagem

Saber respeitá-lo, admirá-lo é, antes de tudo, uma forma de compactuar de sua sabedoria e comunhão com o cosmos, homem simples, filho do Sertão, de uma Nazaré que o viu nascer e percorrer caminhos que o tornaram tenaz, capaz de percorrer os carrascais atrás de bandoleiros e fluir na comunhão intrincada dos espinhos dos coroas-de-frade e xique-xiques. Tomba o grande lutador, a vida segue, os instantes consolidam os enigmas do Sertão, cantam os pássaros-carão e os joões-corta-pau, as baraúnas e aroeiras recriam lumes e larguezas, o cangaço trama suas histórias e infinitos, espaços e concepções.

Petrolina, 07 de Agosto de 2011
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*Aroldo Ferreira Leão é pesquisador de temas vinculados ao Sertão. Possui 130 livros publicados, tem participação em 22 antologias. É professor da UNIVASF (Universidade Federal do Vale do São Francisco). Ainda este ano estará publicando o livro Lampião: Um Estudo de Buscas e Essências. Mais informações sobre o autor estão na home page: www.aroldoferreiraleao.com.br .

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