sábado, 31 de julho de 2010

Tenente João Gomes de Lira

O inimigo de Lampião

Por: Leonardo Ferraz Gominho (*)

Amigo dos padres, inimigo dos cangaceiros. João Gomes de Lira, filho do velho Antônio Gomes Jurubeba (de Nazaré), escreveu um livro - Lampião, Memórias de um Soldado de Volante - onde, entre outras coisas, diz à página 367: - “Naqueles dias (final de 1926 ou início de 1927) verificou-se a visita de Lampião à cidade de Floresta. O primeiro ponto a chegar ali Lampião foi a conhecida Quixabeira de São (sic) Bom Jesus.

Foto: Kiko Monteiro
Ali o chefe Lampião deixou uma parte do grupo seguindo para a cidade com os cabras de sua maior confiança. Em Floresta Lampião visitou chefes políticos do município. Na época foi comentado que existia uma indiferença entre Lampião e os irmãos Gominho, por ter um deles dado a um cachorro o nome de Lampião que, por cujo motivo, o cangaceiro incendiou um caminhão de mercadoria do sr. Fortunato Gominho.

Dizem também que a entrada de Lampião em Floresta causou muita preocupação aos Gominho, pois por serem homens de respeito e amantes da paz, só desejavam a tranquilidade para todos. Também comentou-se que Emiliano Novais, amigo de Lampião, foi o intermediário em acabar com a indiferença entre os Gominho e Lampião, sendo naquele dia passada uma esponja no que existia. A entrada do cangaceiro em Floresta foi à noite. O bandido passou o resto da noite na cidade, tendo viajado na manhã do dia seguinte nos caminhões de Augusto Ferraz e Aprígio de tal.”

Na foto acima Tenente João ainda vivo, com 97 anos e 28 dias, em 31-07-2010.

Estranhamos, no texto acima, três afirmações do Sr. João Lira: primeiro, de que Lampião visitou em Floresta “chefes políticos do município”; segundo, que após a intermediação de Emiliano Novais foi “passada uma esponja no que existia” entre Lampião e os irmãos Gominho; terceiro, que o cangaceiro viajou no dia seguinte “nos caminhões de Augusto Ferraz e Aprígio de tal”. Houve aqui, sem sombra de dúvidas, equívoco do autor. E se comentários dessa natureza ocorreram na época, foram infundados. Vamos aos fatos reais. O Dr. Anselmo Ferraz é muito claro:  
- “Meu irmão Augusto nunca carregou bandidos no seu caminhão, muito menos os de Lampião. Emiliano nada fez pela paz entre Siato e Lampião, mesmo porque Siato não o aceitaria absolutamente, confiando sim a sua segurança a nossa família que o apoiava totalmente. Lampião sabia disso muito bem.”
Por sua vez, consultado a respeito, o Dr. José Goyanna, neto de Antônio Ferraz de Souza - este o maior líder e chefe político de Floresta, naqueles tempos -, foi taxativo a respeito da versão dada pelo Sr. João Lira:
- “Ela se torna fantasiosa, inverídica mesmo, quando afirma que Lampião, naquela noite, visitou “chefes políticos” em Floresta. De fato, foi voz corrente que, numa determinada noite daquele ano, Lampião, na calada da noite, entrou em nossa cidade acompanhado e ciceroneado por Emiliano Novais. É provável que ele tenha feito visitas, mas não aos chefes políticos locais. 
Ele deve ter visitado aqueles que ganhavam dinheiro favorecendo e negociando com a sua “poderosa” amizade. Lampião deve ter deixado o seu grupo à entrada da cidade, talvez mesmo na Quixabeira do Bom Jesus. Mas daí a se dizer que ele andou visitando pessoas de bem, vai uma grande distância. À época eu tinha doze para treze anos. À minha curiosidade de menino não passava despercebido fato de tamanha importância na vida da cidade. Nem jamais ouvi qualquer comentário do meu avô (Antônio Ferraz) a respeito, senão o de que Lampião estivera na cidade, nas condições já descritas, e que tomara cerveja com os seus amigos e hospedeiros.”
 “O que acontecia” - continua José Goyanna - “era que Lampião tinha um grande respeito para com a nossa família. Inteligente como era (isso não se pode negar) não interessava a ele abrir luta contra uma família numerosa, com poder econômico e com disposição para não se deixar desmoralizar pelas suas truculências.
Numa das vezes em que meu avô dialogou com ele, logo após o assalto à Baronesa de Matinha de Água Branca (meados de 1922), assunto questionado na ocasião, Lampião tentou explicar que procedera daquela forma como pagamento ou agradecimento seu a determinado amigo de cujo nome não estou lembrado. Na mesma ocasião o meu avô exprobrou-lhe o procedimento de ele estar, por carta, mandando pedir dinheiro a pessoas pacatas que nada tinham a ver com as suas estrepolias (por essa época Siato havia recebido uma carta pedindo dinheiro e munição). A essa reprovação, Lampião respondeu que só pedia dinheiro às pessoas suas amigas.

A esse argumento, meu avô lhe disse que ele estava simplesmente incomodando pessoas que não tinham nenhuma obrigação de financiar o seu modo de vida e, além disso, ele estava se expondo a fazer novos inimigos porque só atendiam a esses pedidos aqueles que lhe tinham medo. Os que não tinham, simplesmente se negavam a essas “contribuições” e, com isso, ele arranjava mais um inimigo.

Nessa ocasião, foi-lhe oferecida alguma recomendação no sentido de ele querer mesmo deixar aquela iniciante vida de bandido. Lampião chegou quase a prometer aceitar o conselho que lhe fora dado. Como reforço de sua argumentação, o meu avô citou o exemplo de “Sinhô” Pereira que, deixando uma vida de crimes recém-iniciada, retirou-se para o sul e, segundo corria, chegara a ser promovido a Oficial de Polícia de determinado Estado do Centro-Sul. Como se depreende, Lampião não cumpriu aquele quase pacto que, se cumprido, o Nordeste teria se livrado do flagelo que foi a sua vida de crimes e de violências. Mas, se não foi cumprido, daquilo tudo restou um grande respeito que o bandido sempre demonstrou ter para com Antônio Ferraz.”

 Tenente João Gomes, em época turbulenta.

E mostra esse respeito: - “Uma vez chegamos à fazenda Serrotinho, demos pela falta de um carneirinho “enjeitado” que o meu avô havia me dado e que era meu companheiro de brincadeiras, quando na fazenda. Como resposta a nossa indagação, o vaqueiro apresentou uma carta de Lampião, explicando que tendo chegado à fazenda e o grupo estando sem mantimentos, ordenara que se matasse aquele carneirinho que, depois, mandaria pedir a conta ao meu avô. De fato, na carta ele explicava os motivos daquela “desapropriação” e pedia que lhe fosse apresentada a conta do valor do carneirinho. O meu avô não lhe apresentou aquela conta. Certamente se lhe tivesse apresentado, ele a teria pago.”

Quanto à inimizade de Lampião com Siato e João Gominho Filho, José Goyanna definiu a posição de Antônio Ferraz (que era concunhado de Antônio de Sá Gominho, irmão de Siato): - “não era interessante abrir luta contra o bandido. As nossas fazendas eram desguarnecidas, estavam expostas ao capricho dos bandidos. A não ser Ildefonso Ferraz (sobrinho de Antônio Ferraz), os demais fazendeiros não dispunham de meios para garantir suas propriedades contra as arremetidas dos bandidos. Porém, os Gominho podiam ficar descansados porque em caso de ataque de Lampião a qualquer dos dois irmãos, a família entraria em luta sem qualquer hesitação, indo em socorro de suas vidas.

Acordo com Lampião, nunca houve. Isso jamais poderia passar pela cabeça dos então dirigentes da política florestana.

Vou citar mais um fato para corroborar com o meu pensamento e como desmentido à versão do livro do Sr. João Lira. Naqueles anos, houve uma ocasião em que Lampião tinha necessidade de passar em frente à fazenda Curral Novo. À época, ele estava com oitenta cabras. Apreendeu um caminhão que passava pela estrada. Mandou retirar toda a carga. Ele estava ali pelo Governador. “Atenciosamente” mandou um portador levar uma carta para o tio Ildefonso Ferraz, pedindo-lhe uma entrevista. A princípio Ildefonso hesitou em atender ao convite, preferindo reforçar a sua fazenda e “meter-lhe bala” se ele tivesse a petulância de passar com o seu grupo na frente de sua casa.

Depois, “para ele não pensar que estava com medo dele”, Ildefonso, após mandar avisar às fazendas próximas, resolveu atender ao pedido. Devidamente armado e municiado (pra bandido nenhum botar defeito), em companhia de Deoclécio Ferraz (cunhado dele) e mais “Caneta” e outro cabra que agora não me ocorre o nome, dirigiu-se ao ponto de encontro.

Lampião, avisado da aproximação do tio Ildefonso, levantou-se do lugar onde estava sentado, encostou o seu mosquetão à parede, obediente àquele código de honra vigente entre os sertanejos, e foi assim, desarmado, ao encontro dos que chegavam. Só quem vinha a cavalo era tio Ildefonso. Ao ajudar o cavaleiro a desmontar (tudo dentro daquele código) foi logo dizendo, em tom de brincadeira, que tinha mandado chamar tio Ildefonso como amigo mas via que ele tinha atendido ao convite “armado até os dentes”.

Tio Ildefonso lhe disse, então, que estava ali também como amigo, o que não impedia estivesse armado e pronto para qualquer emergência. Ao que Lampião respondeu que eles eram apenas quatro, enquanto o seu grupo dispunha de oitenta homens. Tio Ildefonso respondeu-lhe que aqueles quatro poderiam lhe “dar muito trabalho.” Lampião, sorrindo, disse que aquilo tudo era uma simples brincadeira.

Durante a conversa que se seguiu, o bandido perguntou, por três vezes, como estava o seu interlocutor. Tio Ildefonso, nas três vezes, respondeu que estava bem, sem problemas. Aquelas três perguntas tinham por escopo oferecer vantagens, talvez até pecuniárias, diante de respostas pouco firmes. O que não se deu.

Como corolário àquele “téte-a-téte”, tio Ildefonso disse que tinha um pedido a lhe fazer, depois de cientificado de que ele, Lampião, lhe pedia licença para passar com o seu grupo pela frente da sua fazenda. Coube, agora, a tio Ildefonso fazer o seu pedido: já que ele estava ali, ele podia continuar a viagem, mas que evitasse passar novamente, porque “a minha família tem compromisso com o governo” e não era conveniente que qualquer aproximação entre eles pudesse parecer um conluio, um traço de ligação.

O transporte do grupo foi feito em duas vezes. A primeira leva, quando chegou ao Curral Novo, já encontrou uma recepção à altura porque os parentes, avisados do evento, acorreram devidamente “apetrechados” para a ocasião. Passaram-se coisas engraçadas, dentre as quais pode ser citada aquela protagonizada por Manoel Ferraz (irmão de Horácio e de Oscar Ferraz, entre outros) que, devido à pouca iluminação do local e já era noite, pediu licença a Lampião para lhe iluminar a cara, com a “sutil” justificação de que poderia um dia “estar numa emboscada” e assim poder reconhecer, no meio do grupo, quem era Lampião.”

Esse fato, peculiaríssimo, merece ser narrado. Depois do encontro de Ildefonso com Lampião, o qual se dera na fazenda Várzea Comprida, de Martim Ferraz, o cangaceiro dissera que, ao chegar ao Curral Novo, queria ainda falar com Ildefonso.

Quando o caminhão ali chegou, o chefe dos celerados desceu e mandou que os demais continuassem no veículo. Chamou Ildefonso para um particular. O fazendeiro convidou Lampião para entrar em casa, dirigindo-se a um dos quartos. Foi seguido pelo cangaceiro e por Manoel Ferraz (v. Tenente-coronel João Serafim de Souza Ferraz). Já a sós, Lampião olhou para Manoel e perguntou quem ele era. Ildefonso respondeu que era um primo. O bandido perguntou ainda se era de confiança. O dono da fazenda respondeu que sim, que podia falar à vontade.

Lampião era, sem dúvida, um homem informado, principalmente sobre as coisas do seu interesse. Sabia que Ildefonso tivera um grande prejuízo quando um comprador de Belo Jardim ficou com uma boiada de sua responsabilidade e não o pagou. Disse, então:
 - Ildefonso, você teve um prejuízo e eu quero lhe compensar. Vou arrumar dinheiro para você comprar seus bois a dinheiro. E do dinheiro que eu lhe arrumar, você tira uma parte e vai comprando uma muniçãozinha para mim.
 O fazendeiro e boiadeiro respondeu de imediato:
 - Não faço isso, não. Eu não sou homem para fazer uma coisa dessa. Eu sou um homem da sociedade, um homem do governo, o governo confia em mim e eu não faço uma coisa dessa.
 Lampião insistiu:
 - Ninguém vai saber disso...
 - Não descobre hoje, descobre amanhã. Não dá certo.
Ainda discutiram um pouco mais, até que o cangaceiro viu que não conseguiria munição de Ildefonso. Disse então que queria comprar do fazendeiro três rifles, um deles calibre 32, outro cruzeta papo amarelo e outro mauser. Ferraz respondeu:
 - Eu também não posso vender.
 Por fim, Lampião pediu que Ildefonso não mandasse, outra vez, dar retaguarda quando estivesse atacando os “cachorros de Nazaré”.

Nesse momento, Manoel Ferraz viu Ildefonso arregaçar a manga da camisa e, passando a mão sobre o braço, dizer com a voz nasalada que tinha:
 - O sangue da família de Nazaré corre aqui dentro destas veias. Eu quero que você não tente entrar em Nazaré. Se fizer isso eu estarei pronto para ajudar os nazarezistas.
Ouvindo aquilo - coisa que jamais esperaria ouvir -, Lampião tratou de sair. Havia um candeeiro pendurado num prego, na parede. Manoel Ferraz o pegou e se dirigiu a Lampião, que na ocasião estava com um chapéu de massa, de aba larga e que lhe sombreava o rosto. Num tom de brincadeira, disse:
 - Agora olhe para mim aqui que eu quero ficar lhe conhecendo direito porque pode ser que um dia você se revolte contra a gente e seja preciso eu dar um tiro de emboscada.
O bandido, nesse momento, fechou a cara, mas agüentou calado. Era-lhe conveniente. Com certeza jamais esqueceu a figura alongada de Manoel Ferraz que, naquela época, tanto se empenhou, bravamente, lutando contra os cangaceiros que infestavam a região.

José Goyanna conclui seu pensamento afirmando que Lampião “se transferiu para a Bahia e quando voltou a Pernambuco, depois de 1930, a primeira coisa que perguntou foi por Ildefonso. Ao saber que ele havia morrido, disse que foi bom porque “desta vez eu iria matá-lo.” Esta frase dita por Lampião justifica plenamente que jamais houve qualquer pacto entre o bandido e nossa família. Nem poderia ser de outra forma. Foi fantasiosa a afirmação do Sr. João Lira”, finaliza. Lampião, sem dúvida, respeitava a família Ferraz.

 Ildefonso Flor 
Morto por Virgulino em 1925 no combate de Xique-Xique.  

Um fato passado no Juazeiro do padre Cícero, na década de 1920, merece ser contado. Ali fora ter João Ferraz de Souza (irmão de Antônio Ferraz) levando um parente que buscava no padre o alívio para os seus males. O atendimento era coletivo. O padre aproximou-se e perguntou de onde vinham e a qual família pertenciam. Ao lhe responderem, observou, sendo ouvido por muitos:
 - A sua família tem condições de dar um jeito em Lampião, se assim o quiser.
Supersticioso como era, se tomou conhecimento daquelas palavras o bandido jamais esqueceu.

 O velho Antonio Gomes Jurubeba, pai do tenente João Gomes.

E o que diria Siato a respeito de sua inimizade com Lampião? Em seu livro “Memórias” e a Frederico Pernambucano de Mello contou que, em lombo de burro, em julho de 1917, dirigiu-se ao povoado de São Francisco. Viajava sozinho e armado com uma simples pistola comblain de dois canos (“dois tiros e uma carreira”). Ia receber uma mercadoria que ali fora deixada em poder de Manoel Lopes, primo da mãe de Virgulino, que se destinava a sua casa comercial. Apresentaram-lhe um fretador de nome José Ferreira, tendo na ocasião contratado o transporte das referidas mercadorias. Lembra-se Siato de que José Ferreira era “baixo, moreno, cabelo bom, maneiroso”.

“Assim combinado” - conta Siato -, “José Ferreira, acompanhado não me lembro bem se por dois ou três filhos, com os quais não cheguei a tomar conhecimento, pegou as aludidas mercadorias realmente no dia aprazado, entregando-as em Floresta, tudo em boa ordem. Nessa oportunidade fiz o devido pagamento do transporte e, todos nós satisfeitos, despachei-o, ficando na impressão de que se tratava de uma boa pessoa para tratos e negócios.”

Tempos depois os filhos de José Ferreira envolveram-se em confusões com José Saturnino e a família mudou-se para a fazenda Poço do Negro, pertinho de Nazaré. Ali estabelecido, José Ferreira passou a freqüentar o comércio de Floresta, onde sempre fazia negócios com Siato. Certa vez, Ferreira chegou a ser convidado a almoçar com o comerciante, aceitando. Com os filhos de José Ferreira, entretanto, Siato não teve contato mais estreito. Não se recordava mesmo de suas feições. Acreditava, entretanto, que Antônio, Virgulino e Levino, os três filhos mais velhos, deviam lhe conhecer pois costumavam acompanhar o pai, auxiliando-o no que era necessário.

Em Nazaré, onde chegaram com o apoio local, os filhos de José Ferreira logo se desentenderam com o pessoal da terra. Rompendo um tiroteio e Levino sendo ferido em um braço, foi preso e remetido para Floresta, onde ficou à disposição do delegado de polícia (1919).

Diz Siato:
- “Lembro-me bem que Levino, na cadeia, tendo me conhecido de vista em 1917, quando, com o pai, transportou as minhas mercadorias de São Francisco para Floresta, achou por bem mandar me pedir um metro de morim para amarrar o seu braço que continuava em tratamento e cujo pedido atendi.”
E acrescenta:
 - “Mandaria para qualquer um que pedisse para um fim desse.”
Siato não diz, mas Frederico Maciel deixa claro que, em Floresta, a família de Virgulino votou em pelo menos uma eleição com a família Ferraz. Talvez devido a isso, Antônio Boiadeiro e Antônio Ferraz, principais chefes políticos da família, procuraram resolver o problema da melhor maneira para as partes (os nazarenos eram seus parentes): fizeram um acordo em que a família Ferreira deveria deixar a região, sendo solto Levino. Assim saíram os Ferreira, fixando-se em Alagoas. Retirando-se às pressas, José Ferreira deixava um débito de 70 mil réis com Siato, valor pequeno para a época e, consequentemente, jamais cobrado à família ou a quem quer que seja.

Continua Fortunato em suas memórias: - “Virgulino, antes de se celebrizar com o nome de Lampião e pelo fato de me haver conhecido de vista em 1917 em São Francisco, achou por bem, quando já com um grupo de bandidos, escrever-me uma carta pedindo-me que eu lhe mandasse quatro caixas de balas de rifle e três cortes de brim mescla, a fim de fazer roupa para seus companheiros.

Nessa ocasião, chamei o portador da carta, o qual, aliás, não conhecia. Sabia que, se mandasse uma vez, depois ele pediria mais. Não queria me incompatibilizar com ele e nem com o governo. Disse então as seguintes palavras:
 - Diga ao Virgulino que recebi a carta dele pedindo-me quatro caixas de rifle e três cortes de brim mescla para os seus companheiros. Entretanto, queira lhe dizer que eu sou um comerciante principiante, e não tenho condições para atender ao seu pedido, sobretudo de balas de rifle, que representa material bélico que, certamente, me comprometeria perante as forças que o perseguem e ao próprio governo do Estado. Espero que ele saiba compreender.
Com essa minha resposta, conformou-se Virgulino por vários anos. Porém, anos depois, quando já cognominado Lampião e, como tal, célebre na sua vida, mandou-me um novo recado por um determinado portador (Joaquim Novaes, mais conhecido por Quinca Maneca - v. AFN, Ttn 15 - e que era empregado do major João Novaes), dizendo-me que eu lhe mandasse dinheiro sob pena de me dar maior prejuízo, inclusive ameaçando a minha própria vida.”

Siato pensou no que responder. A situação era delicada. Chamou depois Quinca Maneca e mandou dizer a Lampião que continuava na mesma maneira de se conduzir, acrescentando:
 - Não intervenho em negócios da luta dele, mas também não coopero em nada que ele pretenda nesse sentido porque também não quero me incompatibilizar com as forças.
 O recado foi levado. Lampião continuou espalhando que lhe daria prejuízo.
 “Assim fiquei eu aguardando os acontecimentos e sem poder viajar para qualquer parte, durante mais de um ano.

Entretanto, precisando estar em Recife com o meu sogro Nequinho Ferraz e sua família, no dia 4 de fevereiro de 1926 viajei em um carro que por ali passou com um senhor, fiscal de consumo, que vinha de Salgueiro com sua esposa. Ao passarmos na fazenda Caraíba, no alto Riacho do Navio, cerca de 100 quilômetros da cidade, ainda no município de Floresta, eis que ali se encontrava, no aludido riacho, já de emboscada em um serrote, o grupo de Lampião. Estava esperando a força da Polícia Militar, sob o comando do valente tenente Higino Belarmino, que vinha no rastro dos bandidos.

Nós, os viajantes, nada sabíamos dessa situação. Ao chegarmos na fazenda Jacaré, que fica a cerca de três quilômetros da Caraíba, ali encontramos um caminhão carregado de mercadorias. Vinha de Rio Branco (hoje Arcoverde) para Floresta e conduzia um grupo de tangerinos (sic) que voltava da feira de bois de Rio Branco. Entre eles vinha Joaquim Serafim (Joaquim “Grande”, cabra de Cassimiro Honório e grande amigo da família Ferraz), meu velho conhecido e amigo que residia ali próximo e que me chamando à parte, reservadamente, disse:
 - Seu Siato, por aqui?...
 - O que é que há? - Perguntei-lhe.
 - O Homem está por aqui - acrescentou - e eu acho que o senhor devia voltar daqui.
 Refletindo um pouco, perguntei onde estava ele. Respondeu:
 - Ontem, por volta das quatro horas da tarde, estava ele com o grupo ali na fazenda Volta e escreveu cartas para algumas pessoas daqui da zona, pedindo dinheiro. Eu acho que o senhor devia voltar.
 Nesse momento tive uma inspiração; assim como ele podia estar na minha frente, na travessia para Geritacó, poderia estar nas minhas costas.
 - Mais vale quem Deus ajuda. Eu vou para a frente, continuando com a minha viagem com fé em Deus.
Nesse mesmo momento chegava ali o carro com o meu sogro e família que havia ficado atrás e ao passar na fazenda Caraíba soube da notícia de Lampião e disse para mim:
 - Vamos embora que as coisas aqui não estão nada boas.
 Assim, partimos todos da fazenda Jacaré para o povoado de Geritacó, onde felizmente encontramos um cabo de polícia com 15 soldados, que nos tranquilizaram. Ali almoçamos.

Posteriormente, já no Recife, soubemos através de telegrama que, ao partirmos da fazenda Jacaré, começou o grande tiroteio da força do tenente Higino, que caiu na emboscada de Lampião na Caraíba, brigando durante sete horas, tendo a polícia perdido três soldados, saindo feridos outros sete, inclusive com ferimentos leves no próprio comandante e em Manuel Neto. Após o tiroteio, Lampião chegou à fazenda Jacaré, onde encontrou um outro caminhão carregado de mercadorias para Floresta.

Esse caminhão, entretanto, logo foi invadido pelo grupo que se apossou de tudo o que lhe agradava, inclusive de um fardo de tecidos, destinado a mim, constando de nove peças de mescla denominada “Legionária”, que a firma Moreira Lima & Cia. me havia enviado por cumprimento de autorização do seu então viajante de nome Manoel Campos, cujos tecidos foram todos distribuídos ao pessoal ali presente.

Passado o assalto do caminhão, continuando porém a invasão dos cangaceiros, o motorista ou dono do caminhão pediu ao chefe Lampião que fizesse os rapazes descerem do caminhão a fim de que pudesse refazer a necessária arrumação, sendo logo atendido, adiantando Lampião:
 - Agora tire o seu caminhão para fora daqui que ninguém mais tocará no mesmo.
 Nesse momento um mau elemento do grupo reconheceu a marca de alguns volumes meus e também uma mobília que eu havia comprado no Recife e avisou a Lampião, perguntando se queria que as queimasse.
 - Não - respondeu Lampião -, eu já disse que naquele caminhão ninguém mais bole.
 E assim passou em paz a minha mobília.

Entretanto, antes de três meses depois aconteceu um fato de maior prejuízo. No mês de abril de 1926 tive eu oportunidade de despachar para determinadas firmas compradoras de Gravatá e Recife, 30 volumes de peles de bode, couros de boi e algodão em pluma, servindo de portador o meu costumeiro freteiro, de nome José Marques. Ao regressar, porém, de Rio Branco, onde deixou a carga que levou, o meu freteiro carregou os burros com mercadorias não somente minhas como de vários outros colegas comerciantes de nossa cidade, voltando para Floresta. Ao chegar à fazenda denominada Barra da Serra, arriou o seu comboio para pernoitar.

Aconteceu que, por volta da meia noite, inesperadamente, ali chegou Lampião com o seu grupo de 25 cabras, todos devidamente montados a cavalo ou burro e logo se dirigiu ao freteiro José Marques, dizendo:
 - Esse comboio é do Siato, não é?
 Ao responder o freteiro que não era meu, replicou Lampião:
 - Não negue, porque assim vai morrer...
 - Para falar a verdade, seu capitão, aqui vem algumas mercadorias de seu Siato, mas a maior parte é de outros comerciantes de Floresta.
 - Não quero saber de mais conversa - disse Lampião, voltando-se para o grupo -, queima tudo.
E logo trataram os cabras de arranjar o que se fazia preciso, dando início à queima, até quando começaram a estourar balas de pistola “mauser”, que vinham junto com as mercadorias de um dos meus colegas. Nesse momento Lampião deu ordem para que apagassem o fogo e catassem as balas, como realmente aconteceu. A seguir, Lampião encontrou um dos burros do pobre matuto e logo o pegou e o deu a um dos cabras que vinha mal montado.

Dali, Lampião seguiu sua marcha e antes do amanhecer assaltou o povoado de Algodões, onde se encontravam alguns soldados doentes de sezão (malária) e que voltavam da zona então perigosa do rio São Francisco para o Recife. Esses soldados deram alguns tiros contra o grupo, mas em seguida se retiraram do povoado. Daí em diante o grupo, tomando conta do povoado, praticou, segundo foi sabido, toda sorte de roubos e misérias que não se pode nem se deve descrever, retirando-se em seguida calmamente, sem nada sofrer, tomando o destino que bem quis. Foi sempre assim a marcha do hediondo malfeitor.” O ataque a Algodões se deu a 20.04.1926, segundo Billy Chandler.

Chegando ao Recife, Siato foi avisado por telegrama que Lampião declarara que estaria a sua espera, na volta a Floresta. Era recomendável seu regresso por Alagoas. Antônio de Sá Leal, primo de Siato, convidou-o para ir ao Palácio e falar com o governador Sérgio Loreto, de quem era amigo, para pedir-lhe garantias. Diz em suas Memórias: - “Não obstante esse convite, desisti do mesmo pois não confiava em promessas ou providências por parte do governador, já que o mesmo era parente e amigo do Comandante da Polícia do Estado, o C.el João Nunes, a quem ouvia para tudo, só decidindo de acordo com o pensamento daquele Comandante.

E nós sabíamos que o C.el João Nunes mantinha má vontade para Floresta, pois havia alguns anos fora assassinado naquela cidade um seu irmão, de nome Manoel Nunes, que ali exercia as funções de anspeçada de polícia e não correspondeu no cargo.” O anspeçada tinha desfeiteado um rapaz da família Carvalho, sendo por esse motivo assassinado.

Ficou Siato aguardando o resultado da entrevista do primo Sá Leal com o governador, da qual resultou apenas o envio de um tenente ou capitão da polícia “que não dispunha da indispensável idoneidade para a missão.” Acompanhado de apenas 12 soldados, seguiu para dar combate a Lampião. Vendo a partida, Siato fez ver a Sá Leal que aquela força não faria Lampião deixar a região. O primo então voltou ao governador e este colocou à disposição de Siato um caminhão com 10 soldados para escoltá-lo de Arcoverde para Floresta. Sabendo disso, Siato não aceitou a oferta. E conta: - “Nessa situação, declarei ao primo Sá Leal que podia dizer ao governador que eu ia mandar sustar o despacho (para Floresta) das mercadorias que havia comprado, em virtude de não ter garantias para o seu necessário transporte de Rio Branco para Floresta.

Um oficial com 10 soldados em um caminhão, num caso de um assalto de Lampião, nem mesmo aquela força poderia resistir, senão por pouco tempo, e o resultado seria a debandada da pequena força, deixando-me para ser fuzilado com minha própria esposa.

Em semelhante situação, resolvi regressar para Floresta por Alagoas.” Mais adiante, conta Siato: - “Lampião, no começo de setembro de 1926, achou por bem visitar algumas cidades do nosso Sertão, começando por Cabrobó.” A invasão se deu a 02.09.1926.

Dali “regressou Lampião, visitando também o nosso povoado de Itacuruba, distante cerca de 40 quilômetros de Floresta. Ali chegando, querendo arranjar uns dois bornais e encontrando uma costureira ao lado de sua máquina, logo a solicitou para costurar, sendo delicadamente atendido pela costureira, que era professora estadual. Essa professora era minha prima carnal, Maria Pina (mais tarde esposa do meu outro primo, Euclides Ferraz), que se achava em casa do seu mano Fausto Gomes de Sá Filho, conhecido e tratado por Faustinho. Os dois logo ficaram apavorados por saberem da minha incompatibilidade com Lampião, mas felizmente desse assunto ninguém tratou.” Era o dia 16.09.26.

Dali seguiu Lampião na direção de Tacaratu, indo dormir, no dia 17, na fazenda Tigre (Floresta), onde foi atacado no dia seguinte pelas forças aquarteladas em Floresta. Foi então ferido no peito ou no ombro, indo tratar-se “na serra do Preá”, em Tacaratu. Depois de reestabelecido, atravessou novamente o município de Floresta onde, na fazenda Juá, encontrou uma grande boiada pertencente ao fazendeiro e boiadeiro Joaquim de Alencar Jardim (irmão de Antônio Boiadeiro e tio da mulher de Siato).

Lampião “deu ordem a seu grupo para matar toda a boiada, a tiros. Terminada a matança, disse para as pessoas que ali chegavam que não admitia que ninguém aproveitasse a carne da boiada morta.” Este fato se deu a 12 de dezembro de 1926. Estava, portanto, bem claro que não havia acordo ou pacto com a família Ferraz.

Em junho de 1927, Lampião atacou Mossoró, perdendo aí grande número de companheiros. Fugiu para o Ceará, onde foi recebido com hostilidade e viu outros cabras debandarem. A perseguição tornou-se insuportável para o bandido, que passou a contar com 4 a 6 cabras. “E foi com esse reduzido grupo que Lampião resolveu atravessar o rio São Francisco e galgar o Estado da Bahia, onde após alguns anos se refez, infelizmente”, diz Fortunato Gominho.

Depois de contar outras façanhas de Lampião, Siato conclui: “Estas, finalmente, são as minhas lembranças do banditismo nos sertões do Nordeste e de como Lampião se tornou inimigo do modesto rabiscador destas despretensiosas memórias.” Em nenhum momento deixa transparecer ter havido qualquer acordo, ou que o bandido tenha deixado de ser seu inimigo.

Ao autor, contou uma conversa que teve com Emiliano Novaes. Fora procurado quando se encontrava trabalhando em sua loja. Era pleno dia e não a calada da noite, que foi quando Lampião esteve em Floresta.

Nessa conversa, Emiliano disse a Siato que a partir daquele dia ele poderia dormir em plena rua. Lampião não lhe causaria qualquer mal. O problema havia sido resolvido por ele, Emiliano. O comerciante, ouvindo aquilo, disse que “continuaria dormindo dentro de casa”. Emiliano adiantou: o cangaceiro estava precisando de munição e lhe pedia a colaboração. Somente então Siato compreendeu que se tratava de mais um pedido de Lampião. Indignado, disse a Emiliano que se o preço para não ser molestado era aquele, podia dizer a Lampião que “nada tinha para lhe mandar”. Preferia mesmo retirar-se de Floresta a continuar ali em semelhante situação.

Foi, talvez, nessa época, que resolveu comprar doze rifles e muita munição.
 - “Ele pode entrar aqui depois de gastar muita munição e nós acabarmos a nossa munição, mas nós reagiremos até a última hora”, disse.
E mandou abrir várias “torneiras” no sótão de sua casa comercial e no muro, por trás de sua residência. À família, sempre declarou sua “incompatibilidade” com o bandido, que durou enquanto o cangaceiro foi vivo. A relativa tranquilidade veio somente com a ida de Lampião para a Bahia, onde fixou seu novo centro de operações.

Quanto a João Gominho Filho (Joãozinho Gominho), que ganhou de um soldado de volante um cachorro a quem chamava Lampião, ousou conservar-lhe o nome. A rixa que lhe tinha o famoso cangaceiro, entretanto, era bem mais em decorrência de sua atitude em relação aos nazarenos, como bem esclarece Marilourdes Ferraz (O Canto do Acauã, 2 ed., p. 219): - “Pode-se afirmar que a resistência do povoado, no começo, pôde ser efetuada com a ajuda de um florestano, jovem e idealista, que comerciava em Nazaré: João Gominho Filho.

Este homem, vendo um ataque arrasador contra a localidade e seus habitantes, passou a auxiliá-los na tarefa defensiva, efetuando o intercâmbio de armas: recolhia-as de algumas fazendas e as transportava para as mais visadas pelo bando, escondidas entre suas mercadorias. Dessa forma, prestou um grande benefício aos moradores de Nazaré e arriscou, na mesma intensidade, a sua vida.”

Numa certa ocasião (1926) os nazarenos lutaram numa mesma semana com os revoltosos (Coluna Prestes) e com o grupo de Lampião. Seus estoques de munição reduziram-se a duas balas de rifle. Naquela situação aflitiva João Flor escreveu uma carta para Joãozinho Gominho, pedindo auxílio. Este correu o comércio, obtendo ajuda apenas de duas pessoas: Siato e Antônio Ferraz de Souza, então chefe político da família Ferraz. Siato deu uma caixa de balas e Antônio Ferraz duas. A estas, Joãozinho juntou outras duas, dadas por ele, e fez chegar às mãos de João Flor. Eram 250 balas que “foram recebidas como se fossem 10 mil”, tal o desespero em que se encontravam, na iminência de serem atacados por Lampião, não podendo se defender daquela forma.

Com o serviço de informações que tinha, o bandido, com certeza, tivera conhecimento do trabalho de Joãozinho Gominho. Daí seu grande ódio a essa família. Joãozinho era bastante ligado ao pessoal de Nazaré. Para ali levara, por duas vezes, a Banda Musical de Floresta, sem qualquer ônus para o povo do local, para animar as festividades da padroeira.

Capítulo de seu livro "Floresta uma Terra - um Povo", 1996, editora: Fiam.

1ª imagem e maiores informações vocês localizam no essencial site Genealogia pernambucana
As demais foram inseridas por nós para ilustrar a  matéria.

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