segunda-feira, 22 de março de 2010

TESE

Sertão Sangrento: Luta e Resistência 
por Jovenildo Pinheiro de Souza

CONCLUSÃO

Depois desse exaustivo estudo, pensamos que a análise do cangaço traz um fio condutor que vem de muito longe, ligando uma trilha que se inicia na cultura indígena e vem até nossos dias, enfocando um tipo de brasileiro diferente de outras regiões do país. Por isso, nossas conclusões abrange um tempo histórico, longo, que acompanha a formação étnica e cultural do homem sertanejo e de sua especificidade nordestina.

O processo de colonização do nordeste brasileiro, mais especificamente na região do semi-árido, produziu um tipo peculiar de sociedade. Os sesmeiros dos idos da Colônia plantariam a semente da qual iria germinar o fenômeno do cangaço, séculos depois. O extermínio dos índios, paralelamente à expropriação de suas terras - das quais eram os legítimos proprietários - para que fosse implantada a pecuária, provocou um longo período de insatisfação na região.

Enquanto os grandes proprietários mostravam-se insaciáveis no afã de conseguirem mais e mais terras, tomadas aos índios, aumentando, desta forma, o seu poder político, o restante da população, composta de comerciantes e pequenos sitiantes e vaqueiros, enfrentava dois tipos de problemas: a inclemência da natureza e a insensibilidade dos governantes. As secas periódicas e a coleta de impostos abusivos tornava a vida do sertanejo um fardo muito pesado a ser carregado. O poder central, durante o 2º Império, orgulhava-se de que “o perímetro da eficiência disciplinar” e o “âmbito geográfico da legalidade” 179 ampliavam-se cada vez mais recursos para o Tesouro. Um único problema impedia que o êxito governamental fosse completo: o cangaço, que resistia impunemente à ordem pública.

Foi nesse contexto histórico que ocorreu o movimento social que quebrou a relativa tranqüilidade do Império: a revolta do Quebra-Quilos. Este movimento de rebelião popular foi um exemplo ilustrativo da miopia e arrogância governamental com relação aos cidadãos-contribuintes. Segundo Armando Souto Maior, histórica e sociologicamente o movimento Quebra-Quilos poderia ser classificado como uma forma primitiva ou arcaica de agitação social: “em algumas cidades é mais do que tumulto e menor que uma revolta, noutras, é uma revolta quase articulada, onde se nota interferência de juizes ou padres e reflexos de dicotomia partidária imperial” 180.

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179 VIANNA, F. J. Oliveira. Populações Meridionais do Brasil (História-Organização-Psycologia). Primeiro Volume, 3ª ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1933, pág. 306.
 180 MAIOR, Armando Souto. Quebra-Quilos - Lutas Sociais do Outono do Império. São Paulo, Editora Nacional, 1978, pág. 1.
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Esta rebelião popular foi duramente reprimida pelo Governo Imperial, enquanto que a causa principal que tinha dado origem ao conflito - a excessiva e injusta causa tributária - foi mantida e vem sendo aplicada sem solução de continuidade até o presente. Segundo estudos de economistas, o Brasil tem hoje “o aparelho tributário mais estúpido do planeta”, além de que o cidadão paga “a maior massa de impostos diretos ou ocultos da economia mundial” 181.

Alguns sobreviventes da repressão militar contra a rebelião do Quebra-Quilos fizeram a opção de continuar com a resistência passando ara a clandestinidade, tornando-se, então, os primeiros cangaceiros. O poder monárquico, tão cioso da eficiência do seu sistema repressivo contra a população civil, teve que admitir sua impotência contra o aguerrido tipo de combatente. Oliveira Vianna, referindo-se a este problema, afirma que “o poder monárquico não consegue integrar na sua área de legalidade efetiva essa região calcinada a espera, onde vagueiam impunes as hordas cangaceiras” 182.

Outro importante movimento de rebeldia social foi o de Canudos, quase que em seguida ao Quebra-Quilos. Nesta ocasião - já proclamada a República - o Estado elevou a repressão militar a um nível máximo. Contra a população de Canudos - “um adversário irresignável” 183 - o Governo republicano mobilizou tropas militares de um extremo a outro do país, totalizando trinta batalhões.

Estes contigentes militares, recrutados nas mais diferentes regiões do país e doutrinados segundo os cânones da jovem República, “viam-se em terras estranhas. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pitoresca” 184. Estava aberto o caminho para o massacre da população de Canudos. Todo e qualquer excesso de violência militar contra a população civil estaria justificada e acobertada pelos chefes militares . Euclides da Cunha é taxativo ao afirmar que o que sucedeu em Canudos não foi uma ação de guerra convencional, e sim uma charqueada. Não a ação severa da lei, e sim a vingança 185.

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181 BETING, Joelmir. O Feijão Supérfluo, in jornal o Globo, de 12.12.1993.
 182 VIANNA, F. J. Ob. cit., pág. 307.
 183 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro, 25ª ed., Livraria Francisco Alves, 1957, pág. 259
 184 CUNHA, Euclides da. Idem, pág. 461.
 185 CUNHA, Euclides da. Ibidem, pág. 505.
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Alguns anos depois da destruição de Canudos, e por aproximadamente três décadas, o cangaço teve um período de grande atividade. Os problemas sociais continuavam os mesmos e a insensibilidade dos governantes também. O desconhecimento da região sertaneja por parte das autoridades governamentais, aliada a uma evidente má vontade para com as aspirações do povo, era quase que uma norma política entre os dirigentes. Estácio Coimbra, por exemplo, Governador de Pernambuco na década de 20, não escondia de ninguém o fato de que para ele o sertão não passava de uma “terra de emboscadas” 186.

Foi também neste período que se incrementou a prática de se recrutar os próprios sertanejos para combaterem o cangaço e Lampião, principalmente. Os nazarenos constituem o exemplo mais eficiente desta prática. Durante anos estes valentes sertanejos atuaram em todo o Nordeste, como uma tropa especial de combate. Com o beneplácito do Governo e acobertados por seu comandantes , os Nazarenos utilizaram descontroladamente a força bruta, torturando ou matando adversários, reais ou imaginários. A desconsideração pela lei, aliada do sentimento de impunidade, gerou uma espécie de “cultura da violência”, a qual atingiria o seu auge durante a vigência do seu regime militar de 1964 a 1984, período esse classificado por José Honório Rodrigues como “esses malditos vinte anos” 187.

Analisando-se o fio condutor da repressão governamental, ao longo dos últimos quatro séculos da história do Brasil, a qual atingiu desde os indígenas até aos movimentos políticos de períodos recentes, compreende-se o tom de indignação de José Honório Rodrigues, quando debruçou-se sobre a verdadeira face da história d país. Sobre esta história cruenta, disse o seguinte:
“Já escrevi e repito que o enredo da nossa história, muito menos cordial que se julgou é muito mais sangrenta e violenta que se conhece. Foi por isto que Capristano de Abreu escreveu que o povo brasileiro foi sangrado e ressangrado, capado e recapado e que os alicerces foram construídos com sangue” 188.
Em um dos episódios que ilustram as palavras indignadas de Capistrano de Abreu, pode ser exemplificado pelos indígenas da tribo Pankararu, de Pernambuco.

Estes índios tem sofrido, desde o início da colonização portuguesa, um sistemático, processo de desapropriação de suas terras, habitadas por eles desde tempo imemoriais. Desde 1870, os Pankararu passaram a viver numa área demarcada de quase 15 mil hectares, de acordo com o ato assinado por Dom Pedro II. Em 1940, durante o Governo de Getúlio Vargas, a área originalmente doada aos Pankararu foi reduzida, sendo fixada em 8.100 hectares, devido à pressão de poderosos proprietários de terras, que cobiçavam a área. Atualmente, os índios Pankararu estão na iminência de serem desalojados do pouco pedaço de terra que lhes resta, por parte dos latifundiários, respaldados pelos órgãos governamentais, encarregados - em tese - de defendê-los.

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186 MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol - O Banditismo no Nordeste do Brasil. 1ª edição, Recife, Editora Massangana, 1985, pág. 154.
 187 RODRIGUES, José Honório. “O que é o Brasil, o que é a história do Brasil”, in jornal Folha de São Paulo, de 16.10.1984.
 188 RODRIGUES, José Honório. Idem, 16.10.1964.
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Os índios Pankararé descendentes diretos dos Pankararu, ao fugirem do confronto cruel contra os poderosos colonizadores e latifundiários, buscaram abrigo no Raso da Catarina, uma região tórrida e desértica, localizada nos sertões da Bahia. Essa tribo indígena adaptou-se ao duro clima da região e formou um tipo peculiar de sertanejo, bem marcado pelos costumes e tradições dos seus ancestrais.

No Raso da Catarina - uma região de mais de 5 mil metros quadrados os Pankararé conseguiram salvar as suas vidas e dar continuidade às suas tradições tribais. Ao longo do tempo e de geração a geração, os Pankararé conseguiram adaptar-se a desvendar os segredos mais ocultos deste deserto brasileiro. Nesse processo de conhecimento e vivência da região, a Natureza mostrou-se aliada e a terra fértil. Ao longo dos séculos, período no qual o deserto foi transformado em paraíso, os índios chegaram a conclusão de que a fauna e a flora dessa região são protegidas por seres espirituais, ou “encantados”, como eles assim os denominam. Essas figuras espirituais, segundo os índios, “são pequenos seres de pele escura, tamanho de criança, mas feições de adulto, muito fortes, que pune, com surras monumentais que abusam da natureza” 189.

Nesse mundo protegido pelos “encantados”. os Pankararé adquiriram a convicção de que “se os brancos não acabassem com a caça, a madeira e o mel, os índios não precisariam do governo para vir em sus defesa. Nós saberíamos vivermuito bem como os antigos. Pois o Raso da Catarina não é o deserto que parece ser. Aqui tem tudo que nós precisamos: água, alimento, remédio” 190.

E foi nessa região sagrada dos Pankararé, cheia de mistérios, lendas e sob a proteção dos guardiões “encantados”, que Lampião encontrou o seu refúgio ideal, uma espécie de santuário guerrilheiro, no qual descansava de suas idas e vindas, cansado das léguas tiranas do sertão. Um aspecto deve ser ressaltado: Lampião não invadiu o território dos índios Pankararé, não impôs o seu estilo de vida e nem desorganizou os costumes ancestrais da tribo. Ao contrário. Os índios Pankararé convidaram-no e ao seu grupo de cangaceiros para que transformassem o Raso da Catarina num abrigo seguro contra as perseguições policiais. O convite feito pelos índios e aceito por Lampião, demonstra que houve uma perfeita identidade cultural entre as duas partes.

A correspondência cultural e o nível de confiança entre os Pankararé e Lampião tornaram possível que o Raso da Catarina, mais precisamente onde está localizado o desfiladeiro de Trindade, se transformasse numa retaguarda segura e num ponto de apoio logístico de extrema importância para o chefe guerrilheiro. Durante quase uma década , Lampião e seu bando tiveram a proteção, o apoio e a inabalável lealdade dos Pankararé.

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189 BECCARI, Álfio. Raso da Catarina: vida e beleza no deserto. Ano 3, n.º32, Editora Globo, pág. 62.
190 BECCARI, Álfio. Idem, pág. 48.
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Dadá, viúva de Corisco e uma das sobreviventes do ciclo do cangaço, declarou que o melhor período se sua agitada vida no cangaço foi passado no Raso da Catarina. Disse ela:
Aquilo é que foi uma maravilha ... Não faltava nada. Todo dia tinha caça para comer, era cutia, tatu, peba, caititu. Do mato eles traziam as plantas para a gente fazer remédio e comer ... Hoje, quando ouço falar que o povo por lá passa fome, não acredito. Naquele tempo, no Raso, ninguém morria de fome. Só de tiro.” 191.
Ainda sobre esta íntima ligação entre os cangaceiros, a região e o povo, um depoimento de Zé Sereno, um ex-cangaceiro, é muito esclarecedor. Segundo ele, os cangaceiros sentiam-se no meio do povo como peixe do mar. Os comandantes das forças militares convencionais de combate ao cangaço, logo perceberam que o apoio, passivo ou ativo, da população civil para com os cangaceiros, transformava estes em adversários difíceis de serem derrotados através de operações militares convencionais. Os estrategistas militares priorizavam seus objetivos de guerra contra Lampião, atacando a população civil, numa operação em larga escala. O objetivo - segundo os estrategistas militares - seria secar o mar (o povo) e matar o peixe (o cangaceiro). O despovoamento dos sertões da Bahia, em 1932, que deveria resultar no isolamento total dos cangaceiros com relação à população, resultou num enorme fracasso.

Essa prática de seqüestro de população tornou-se um dos principais objetivos da doutrina de guerra contra movimentos guerrilheiros em várias partes do mundo. A guerra do Vietnam forneceu um exemplo clássico de aplicação dessa tática de guerra. Os Estados Unidos, ao sentir-se incapaz de derrotar militarmente os guerrilheiro vietnamitas, transformaram a população civil em alvo preferencial. Na formulação das medidas que seriam aplicadas contra a população civil, discutiu-se “desde o antiquado método nazista de tratar todos os civis como guerrilheiros potenciais, através do massacre e tortura seletivos, até ao estretagema atualmente popular de seqüestrar populações inteiras e concentrá-las em locais fortifica dos nas aldeias, na esperança de privar os guerrilheiros de sua fonte indispensável de suprimento e informação” 192.

No seu período de juventude, Lampião, ainda conhecido como Virgulino Ferreira, e exercendo a profissão de almocreve, teve oportunidade de estabelecer vínculos muito fortes com a sociedade e o povo sertanejo. O conhecimento da região, de forma detalhada, e a total identificação com o tipo de sociedade em que vivia, constituíram-se em preciosos triunfo que Lampião soube utilizar ao longo dos anos pontilhados por combates com efetivos militares. Esse aprendizado só foi possível graças aos anos em que ele almocrevou, transportando mercadorias entre várias cidades sertanejas separadas entre si por centenas de quilômetros.

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191 BECCARI, Álfio. Ibidem, pág. 68.
192 HOBSBAWN, E. J. Revolucionários. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1982, pág. 169.
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Os almocreves dos sertões nordestinos seguiam, com pequenas variações, o padrão adotado pelas caravanas afro-asiáticas e, posteriormente, portuguesas. No caso de Portugal, especificamente, os almocreves se especializaram no transporte de mercadorias do litoral para o interior e vice-versa. Durante séculos, estes constituíram-se na coluna vertebral dos transportes internos, até praticamente desaparecerem no segundo quartel do século XX. Embora sem ter um conhecimento cabal e completo do papel que desempenhava na sociedade, como uma das peças principais do progresso da circulação de mercadoria, pode-se subscrever a afirmação de Pedro Calmon, quando este descreve o almocreve como sendo o homem que , em última instância, “transportava as utilidades e as idéias , os bens materiais e as notícias do mundo” 193.

Portanto, através das linhas de distribuição de mercadorias vindas da Europa, da Inglaterra e de Portugal, principalmente, os almocreves abasteciam os sertão nordestino dos principais gêneros alimentícios, tais como: manteiga, velas, vinhos, charques, açúcar refinado, bolachas, etc.

Ulisses Lins de Albuquerque, no seu livro Moxotó Brabo, descreve a rotina dos almocreves da seguinte forma: “Havia poucos conhecidos à margem da estrada, nos quais, por vezes surgia uma bodega. Uma garrafa segura por um cordel, pendurado à porta ou à parede, era sinal que ali se vendia aguardente. Um sabugo de milho enegrecido ao fogo indicava que havia fumo. Um pedaço de madeira, quadrado, mostrava que a rapadura esperava o freguês. Outros sinais anunciavam que se vendiam, também, farinha, milho, feijão.

“À sombra de um juazeiro, de uma quixabeira, ou de outras árvores frondosa era procurada pelos almocreves, quase sempre onde existia uma aguada.” “Todos conduziam o seu farnel: carne, farinha rapadura, queijo e ali se regalavam, bebendo água fria, assim conservados nas borrachas... que eram de couro. “ 194.

E, mais adiante, descreve o que representa a chegada dos almocreves na sua vila, hoje a cidade de Sertânia. “Quando de regresso a Alagoa de Baixo, a vila como que se agitava. Os comerciantes surgiam às portas, curiosos uns, outros ansiosos pelas cargas que traziam o sortimento desejado” 195.
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193 PINTO, Estevão. História de uma Estrada-de-Ferro do Nordeste (Contribuição para o estudo da formação e desenvolvimento da Empresa “The Great Western of Brazil Railway Compant Limited”e das suas relações com a economia do Nordeste Brasileiro). São Paulo, Livraria José Olympio Editora, 1949, pág. 13.
 194 ALBUQUERQUE, Ulisses Lins de. Moxotó Brabo. 2ª edição, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1979, pág. 109.
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Durante quase uma década, de 1910 a 1919, Virgulino Ferreira e seus irmãos mais velhos acompanharam o pai neste trabalho fascinante e de grande responsabilidade. Entre os treze anos de idade e pouco mais de vinte, Virgulino Ferreira, irmão e pai, compraram, venderam e distribuíram mercadorias numa vasta região do Nordeste. Nestes anos de formação da sua personalidade, Virgulino Ferreira teve oportunidade de conhecer algumas das principais cidades nordestinas, tais como: Pesqueira, Rio Branco (Arcoverde), Alagoa de Baixo (Sertânia), Belmonte, Salgueiro, Custódia, Petrolina, Vila Bela (Serra Talhada), Triunfo, Flores, Carnaíba, Floresta, etc. ..., e estados como Alagoas, Sergipe, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Estas cidades e estados formam o amplo cenário, no qual, futuramente, o jovem Virgulino Ferreira, já transformado, reencontraria os velhos amigos e inimigos, durante vinte anos de luta armada.

Sobre a importância do período em que Virgulino Ferreira exerceu a profissão de almocreve e o que isto representou para as suas atividades guerrilheiras, vale citar o que diz Billy Jaynes Chandler. Segundo este historiador norte americano, quando Lampião chegou à Bahia, em agosto de 1928, depois de uma longa e perigosa retirada, vindo de Mossoró, cidade do Rio Grande do Norte, não encontrou nenhuma dificuldade, já que “conhecia o norte da Bahia, pois quando rapazinho, viajava para com o seu pai, fazendo carretos” 196, isto é, almocrevando.

A mesma receptividade encontrou em Sergipe. Ainda segundo Chandler, neste estado nordestino “quase todo o povo do sertão estava pronto para ajudá-lo” 197.

Além disso, Lampião tinha “amigos importantes nas altas esferas do estado. As conjecturas sobre estes amigos influentes quase sempre apontam duas famílias, os Brito e os Carvalho. Os Brito, estabelecidos no importante porto de Propriá, no Rio São Francisco, eram tidos como um dos maiores proprietários do estado. As relações de Lampião com eles foram excelentes, pois era conhecido da família desde seus tempos de criança, quando transportava couro para eles” 198.

Ao longo das duas décadas de luta contra as forças militares de sete Estados nordestinos, Lampião demonstrou ser muito talentoso no emprego de táticas na guerra de guerrilhas. E um dos aspectos que devem ser ressaltados, nesta questão, foi a habilidade com que soube adaptar as roupas típicas dos vaqueiros nordestinos, transformando-as em eficazes trajes de guerra.

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195 ALBUQUERQUE, Ulisses Lins de. Ob. cit., pág. 170.
 196 CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião - O Rei dos Cangaceiros. 1ª edição, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1980, pág. 125.
 197 CHANDLER, Billy Jaynes. Idem, pág. 208.
 198 CHANDLER, Billy Jaynes. Ibidem, pág. 208.
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O fato de Lampião ter adaptado as roupas dos vaqueiros em trajes de guerra, demonstra até que ponto ele tinha mergulhado nas tradições do povo sertanejo. Segundo Gustavo Barroso, os corpos de Jagunços ou Couraças surgiram durante a guerra da Independência, na Bahia. Com suas “roupas exóticas e armamento irregular, surgidos do próprio solo e cobrindo-se com chapéu de couro de vaqueiros” 199 também participaram, como voluntários, na guerra do Paraguai. Ainda segundo, Gustavo Barroso, “esses soldados encouraçados prendiam-se a uma antiquíssima tradição das nossas milícias sertanejas no período colonial” 200.

O Exército brasileiro mostrou-se interessado em conhecer e aprofundar o conhecimento sobre as roupas de combates utilizados para cangaceiros. E o resultado prático deste interesse foi a confecção de um uniforme militar genuinamente nordestino. Em 1987, o Exército mostrou ao então Presidente José Sarney a nova vestimenta. Este uniforme. utilizados por unidades baseadas na caatinga, é “muito semelhante à vestimenta tradicional do sertanejo... é composto por chapéu de couro, blusa cáqui com proteção de couro, como um gibão, calça cáqui com perneiras de couro, cinto verde com fivela preta, luvas e coturnos especiais” 201. Este novo uniforme foi adotado pelo Regulamento de Uniforme do Exército, passando a ser utiliza do pelo Comando Militar do Nordeste, nos Batalhões de Petrolina (PE), Cratéus (CE) e Companhia de Paulo Afonso (BA).

Vale salientar que a eficácia da roupa de combate dos cangaceiros teve a sua utilidade comprovada e reconhecida, não somente no Brasil, como também nos Estados Unidos. Como parte do intercâmbio mantido entre o exército brasileiro e o norte-americano, vigente desde 1984, cinco oficiais, membros da Escola de Infantaria Leve de Fort Benning, na Georgia, fizeram um treinamento de dois dias na região da caatinga de Petrolina, a 774 quilômetros do Recife. Os oficiais norteamericanos - dois deles participantes da Guerra do Golfo - foram treinados em técnica de sobrevivência e combate no sertão, por oficiais do 72º Batalhão de Infantaria Motorizada (72º BI). Segundo noticiou a Imprensa, os oficiais norteamericanos, ao concluírem o curso que os tornou aptos para operações em clima desértico, levaram para “ estudo o fardamento dos militares do 72º BI, de brim revestido em couro. O modelo, inclusive o chapéu, foi inspirado na indumentária dos cangaceiros” 202.

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199 BARROSO, Gustavo. História Militar do Brasil. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1935, pág. 46.
 200 BARROSO, Gustavo. Idem, pág.78.
 201 JORNAL DO BRASIL. “Exército mostra a Sarney uniforme para a caatinga”, 25.8.1987.
 202 JORNAL O GLOBO. Tempestade na Caatinga, 25.9.1993.
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Com todos os dados e análises realizadas, chegamos a algumas conclusões. O Estado, durante o período estudado, era uma instituição oligárquica, forte, voraz, coletora de impostos e com um aparelho repressivo cruel. As classes sociais que se envolveram nos conflitos foram principalmente rurais: grandes proprietários de terras, médios camponeses de subsistência, pequenos fazendeiros, pequenos comerciantes e grupos militares da capital ou recrutados na região. Os conflitos se deram de forma desorganizada, sem plataformas políticas. Na maioria dos casos, lutava-se apenas pela sobrevivência diária. Com exceção parcial da Coluna Prestes, eram grupo pré-políticos, sem ideologia definida e sem plataforma política clara.

No campo da mentalidade, o cenário do sertão produziu um tipo de “personagem social” com características especiais e códigos éticos próprios. Os líderes carismáticos dessa região, através da população, transformaram-se em mitos: Conselheiro, Padre Cícero, Lampião e Prestes. Uns, através da literatura de cordel, outros através de intelectuais engajados ou de arquivos policiais, a histórias desses personagens foi construída ou destruída.

Pela desigualdade entre as forças combatentes e o apoio governamental, as lutas foram violentas, tornando o sertão um cenário sangrento. Se de um lado os cangaceiros eram cruéis, a repressão policial foi tão ou mais cruenta. O gênio militar de Lampião e o seu forte carisma, justamente com o conhecimento da área geográfica, do universo cultural e o apoio da população, tornaram-no o combatente que mais lutou e resistiu enfrentando a terrível repressão do Estado.

O mundo do cangaço e a vida de Lampião encontraram na literatura de cordel a forma ideal de expressão e divulgação. O cordel constituiu o verdadeiro documentário de costumes da população rural. Neste tipo de literatura encontram-se registradas “as impressões do povo a respeito de acontecimentos sucedidos no município, no Estado, em todo o País... denunciando costumes, atitudes, preferências e julgamentos” 203.

Sendo Lampião uma das figuras marcantes da região nordestina, em rebeldia contra a ordem estabelecida, os poetas populares transformaram-no, imediatamente, num herói. Antônio Conselheiro e Padre Cícero também foram elevados à condição de heróis, principalmente por sua qualidades de líderes populares. Desses três personagens pode-se afirmar que todas tiveram suas biografias exaltadas e cantadas nas feiras públicas das cidades sertanejas, nas vozes e nos violões dos poetas. As várias versões das vidas desses três personagens não foram produzidas por encomenda, com palavras medidas e cantadas. Ao contrário, eram versões biográficas produzidas no calor das paixões e entoadas pelos violeiros repetistes, com o aplauso das multidões. Nos versos apaixonados, o povo reconhecia os seus heróis, elevados à categoria de mitos - e aplaudia.

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203 CAMPOS, Renato Carneiro. Ideologia dos Poetas Populares. 2ª edição, Recife, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1977, pág. 10.
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Um fato sobre o qual deve ser chamada a atenção é o que se refere à constatação de que os poetas populares “são geralmente individualistas: sempre observam a situação do indivíduo, poucas vezes a coletividade da humanidade” 204. Um paralelo entre Lampião e Luiz Carlos Prestes ilustra este assunto. Enquanto o primeiro constitui-se num fonte inesgotável de inspiração para os cordelistas, o segundo, por outro lado, foi quase que ignorado. Renato Carneiro Campos chega mesmo a afirmar que “não conhecemos folhetos escritos por poetas populares comunistas.

Sobre Carlos Prestes, figura carismática para grande parte do povo brasileiro, encontramos apenas referências feitas no folheto A Verdadeira História de Lampião e Maria Bonita, escrito por Manoel Ferreira Sobrinho...” 205. A legenda do Cavaleiro da Esperança, por não ter conseguido atrair a atenção dos poetas populares e nem da população nordestina, foi elaborada por intelectuais urbanos, militantes partidários, poetas engajados.

Enquanto os movimentos sociais citados anteriormente - Quebra-Quilos, Canudos, etc. ... - são conduzidos por lideranças vigorosas, reconhecidas pela população e perpetuados pela literatura popular e de cordel as atividades políticas de Luiz Carlos Prestes são divulgadas através de livros escritos por intelectuais, de forma bastante apologética. O romancista Jorge Amado é o exemplo mais conhecido dessa forma de glorificação do herói, num culto à personalidade, culto esse tão condenado pelos próprios partidos de esquerda.

Os estudiosos da cultura popular nordestina logo perceberam que a saga de Lampião e do cangaço não se deixariam aprisionar em imagens fixas e estereotipadas. Atento a este fato, Hermilo Borba Filho, jornalista, ator e tradutor de peças, pronunciou uma conferência no dia 28 de setembro de 1945, no Salão do Gabinete Português de Leitura. Nessa conferência - comentada por Joel Pontes - Hermilo chamava a atenção para o único caminho que poderia levar o teatro popular ao apogeu: “o aproveitamento dramático dos assuntos brasileiros. Segundo Hermilo, os heróis dos folhetos populares, tais como Lampião, Antônio Conselheiro e Zumbí, injetariam um novo ânimo e uma maior vitalidade ao teatro brasileiro.

Segundo suas palavras: ‘ Que se faça teatro com esse material e a multidão sairá das feiras para as casas de espetáculos e daí partirá para a compreensão para as obras de elite. Que se acostume primeiro com os dramas que vivem dentro dos seu sangue” 206.

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204 CAMPOS, Renato Carneiro. Idem, pág. 35.
 205 CAMPOS, Renato Carneiro. Ibidem, pág. 36.
 206 PONTES, Joel. Teatro do Estudante de Pernambuco. Revista Arquivos, 21-47, Secretaria de Educação e Cultura - PR e Imprensa Universitária, Recife, 1966, pág. 103.
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Desde o romantismo e a literatura cearense do fim do século, passando pelo modernismo e o movimento regionalista de 1926, até a sugestão de Hermilo Borba Filho, em 1945, havia plena concordância em que o teatro deveria fincar suas raízes nos motivos populares. E a cidade natal de Lampião, Serra Talhada, está dando um exemplo concreto de resgate, preservação e continuidade dos valores culturais da região. Durante as comemorações do Dia Mundial do Teatro - 27 de março - foi realizada a 3ª mostra de Teatro Amador Infantil. O nome de cada premiação era uma homenagem a Lampião e outros cangaceiros do seu bando. O melhor espetáculo ganhou o prêmio Cangaceiro; melhor espetáculo infantil, Prêmio Xaxado; Direção adulto, Prêmio Jurití, Direção infantil, Prêmio Zabelê; melhor ator, Prêmio Lampião; melhor atriz, Prêmio Maria Bonita 207.

Outro ponto que deve ser ressaltado é o que trata do significado da irresignação dos jagunços combatentes de Canudos e da insubmissão dos cangaceiros, liderados por Lampião. O mesmo solo e as mesmas raízes que produziram o messianismo e o cangaço, também resultaram culto da alegria de viver e na celebração da vida. No caso específico dos cangaceiros, estes quase sempre são mostrados de forma que sejam ressaltadas ”suas roupas coloridas, seus chapéus cheios de metais brilhantes.

Os momentos de descanso das infindas caminhadas pelo sertão calorento e dos sangrentos combates com a polícia eram ocupados pela dança. No bando de Lampião, a presença de mulheres celebravam os atos de amor. O reverso da luta contra a morte era a celebração da vida” 208.

A morte física de Lampião, em 1938, serviu de pretexto ara que o Estado - a partir de 1930, o monopolizador absoluto da violência - pudesse, enfim, tentar por em execução o plano de desvincular a história de Lampião e do cangaço da história real do país, transformando-a em peças de museu, catalogadas e expostas à curiosidade do público. O Museu Nina Rodrigues, do Instituto Antropológico e Etnográfico da Bahia, foi o local onde, por longos anos, estiveram expostas as cabeças cortadas dos cangaceiros. Janice Theodoro da Silva, ao resenhar o livro Os Cangaceiros, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, resume, de forma admirável, o que classificou de institucionalização do discurso “científico” da repressão estatal . Escreveu ela:
“Se a sociedade não pôde aprisioná-los em vida, confinou, entretanto, suas imagens heróicas às vitrines do museu, para que o chapéu de couro, o Mosquetão, a Faca, a Cartucheira, os Bornais, o Lenço, a Pistola Parabellum e as cabeças mumificadas dos bandidos não lembrassem, ao público que vinha admirá-las, aquele tipo de organização social que estava fora do controle dos fazendeiros, da Igreja - revestida em seu personagem, Padre Cícero - e da própria repressão armada que, incapaz de aprisioná-los vivos, tiveram necessidades de confiná-los , depois de mortos, a todas as instituições repressoras, sem exceção: escadarias da Igreja na praça, quartel da polícia, Santa Casa com toda sua Misericórdia e, principalmente no Museu, para que nenhum desses dados da civilização material pudessem lembrar a vida e a liberdade 209.

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207 JORNAL DO COMÉRCIO. Artistas Comemoram o Dia Mundial do Teatro, 24.3.1994.
 208 MENDONÇA, Antonio Gouveia. As Lutas contra a morte social no Brasil, in A Vida em Meio à Morte num País do Terceiro Mundo, São Paulo, Edições Paulinas, 1983, pág. 42.
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Atualmente, passado tanto tempo, a memória popular registrou imagem cuja forma não pode ser ignorada. Nesta direção, poetas, pintores, escultores, teatrólogos, atores, cineastas, mamulengueiros e demais artistas e músicos populares, trazem todos os dias, a figura do Cangaceiro, especialmente a figura de Lampião, em obras de arte que são significativas no cenário cultural do Brasil.

Assim, terminamos este trabalho, lembrando o nosso poeta ibérico, mestiço e recifense, Carlos Pena Filho:

“Hoje todo mundo sabe
quem foi ele, o capitão
Junta o sabe e o não sabe
e inventa outro Lampião.
Mas, dele mesmo, não sabem
e nem nunca saberão,
pois ele nunca viveu,
não era sim, era não,
como essas coisas que existem
dentro da imaginação
Quem puder que invente outro


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209 SILVA, Janice Theodoro da. Resenha bibliográfica do livro Os Cangaceiros, de Maria Isaura
Pereira de Queiroz, in Revista História, vol. LVI, outubro-dezembro de 1977, São Paulo, pág. 617.
 210 FILHO, Carlos Pena. Livro Geral (Poesia): Episódio Sinistro de Virgulino Ferreira”. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959, pág. 17.
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Consulte a fonte:
Pelourinho.com

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