quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Resenha

Análise abrangente do cangaço

por Luiz Carlos Monteiro

O relançamento de Guerreiros do Sol - Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, quase 20 anos depois da primeira publicação, revela a atualidade de seu conteúdo e a inteireza de seus propósitos.

O fenômeno do cangaceirismo no Nordeste brasileiro já rendeu textos e estudos de variada espécie, produzidos e contextualizados nos moldes das ciências humanas e da literatura propriamente dita. Do século 19 para cá, debruçaram-se sobre o tema poetas populares, biógrafos amadores, romancistas consagrados, historiadores, sociólogos e antropólogos de orientação diversificada. No entanto, o estudo de maior completude e abrangência até agora, é o livro de Frederico Pernambucano de Mello, Guerreiros do Sol - Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, relançado recentemente numa publicação conjunta das editoras Girafa (SP) e Massangana (PE).

O autor parte da circunstância do isolamento da terra e da população sertaneja com relação principalmente ao litoral, para descrever e explicar todo o complexo de violência que se abateu sobre a região nordestina desde a colonização. Os ataques do colonizador aos habitantes nativos, as reações sanguinárias destes, a própria ferocidade do homem do ciclo do gado, os prejuízos causados pelas grandes secas, tudo isso sedimentado num meio inóspito e hostil, representam motivações seguras para o aparecimento do banditismo e se processam na temporalidade vagarosa ou precipitadora dos sucessos dessa violência.

O homem rural nordestino, místico e fatalista, é um homem, na visão de Frederico Pernambucano, com "arquétipo mental" caracterizado pelo "individualismo arrogante, aventureiro e épico, plantado ali nos primeiros momentos da colonização e conservado sem contraste, ao longo de séculos, pela ausência de contaminação externa que o isolamento sertanejo proporcionou".

Com seu gosto pelas classificações, Frederico Pernambucano sugere, nesse contexto, uma tipologia humana de homens destemidos e corajosos, matadores covardes e traiçoeiros às vezes, que se inicia com o "valentão", passa pelo "cabra" e o "pistoleiro", até chegar ao "cangaceiro", que não admite patrão como os outros. O pesquisador vai desvendando as diferenças e semelhanças grosseiras ou sutis entre eles, seus comportamentos psicossociais e modos de atuação.

Pernambucano vai mais longe ao redefinir os tipos de cangaço que assolavam o sertão à época e as peculiaridades inerentes a cada um deles, que apareciam isolados ou em bloco, excluindo-se ou interpenetrando: o cangaço-refúgio, para quem estava a se esconder por crimes cometidos, o cangaço de vingança, para quem deveria lavar honra familiar ou individual com sangue, e o cangaço meio de vida, para aqueles que não tinham outras opções de trabalho.

Frederico Pernambucano ensaia uma definição para o que denomina de "escudo ético", que representava uma justificativa para se continuar no cangaço, "instrumento capaz de convencer a quem o utilizava, e à sociedade, da nobreza da vida putativamente vingadora dos bandidos, mas que não passava de um bovarismo épico facilmente aceito como real por uma cultura carente de símbolos desse gênero". O autor polemiza também em cima do que escreveram outros estudiosos do cangaço como Rui Facó, Cristina Mata Machado e José Honório Rodrigues, que fizeram interpretações ideológicas e econômicas simplistas e reducionistas.

No caso de Cristina Mata, que colocava em lados opostos o cangaceiro e o coronel, Pernambucano argumenta que as relações entre ambos se davam bem mais no plano da convergência e da colaboração do que no da disputa. O auge do cangaço e sua repercussão no país, preocupando autoridades estaduais e federais se verifica em 1926, representando "a imagem de um cangaço gigante, cangaço do mosquetão, do parabelo, da bala de aço furando pé-de-pau e exigindo trincheira de pedra, do bando de cento e cinqüenta homens, do ataque a cidade de luz elétrica, das primeiras páginas quase diárias dos jornais, da orgia - até financeira - dos trovadores populares, da freqüência às conversas do Catete e do Monroe, dos três, dos cinco, dos sete Estados da Federação".

A essa altura, Lampião que tinha se iniciado no cangaço para vingar a morte do pai, terminou por transformar a atividade em "meio de vida", amenizando e esquecendo a vingança para enriquecer e conquistar fama, conviver com coronéis e ter dezenas de bandoleiros à disposição a qualquer momento para a luta.

Num artigo sobre o romance Cangaceiros de José Lins do Rego, o antropólogo e folclorista Manoel Diégues Júnior reclamava, há meio século, da falta de um estudo substancial sobre o cangaço e suas consequências para a região nordestina. Este trabalho, Guerreiros do Sol, que tem como método geral classificar os eventos mais importantes "por predominância de recorrências", na expressão de Gilberto Freyre, somente apareceria no Recife duas décadas depois, em 1985. E esta nova edição enseja revelar apenas a atualidade de seu conteúdo e a inteireza de seus propósitos num Brasil que padece de violência e banditismo extremados, notadamente nas áreas urbanas periféricas e perigosas, sem minimizar seus efeitos no campo com a prática da pistolagem e os conflitos gerados pelas invasões de terras.

*O texto nos foi enviado por um amigo que não cita o veículo. 

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