domingo, 11 de outubro de 2009

Maria Stella Siqueira Campos

A mulher que viu Lampião
Pernambucana de 95 anos tira anotações do baú e lança livro com histórias do Sertão

por Fabiana Moraes

Foto: Leo Caldas/Ag. Lumiar
Sob o sol forte do sertão do Pajeú, em Flores, a 386 quilômetros de Recife, no sertão de Pernambuco, centenas de pessoas aguardavam um dos dias mais importantes na história da cidade: a chegada do primeiro automóvel ao local, em 1916. Tudo havia sido preparado com cuidado, nos mínimos detalhes: banda de música, bandeirolas coloridas e vigário para abençoar a novidade. A bordo do carro estava o então governador de Pernambuco, Manoel Borba.

Essa e outras histórias estão no livro Flores, Campos, Barros e Carvalho - Olhando Para o Passado Até Onde a Vista Alcança, da funcionária aposentada do telégrafo de Flores, Maria Stella Siqueira Campos, 95 anos. "Nunca passou pela minha cabeça lançar um livro e fazer sucesso", diz a autora. A família está reunindo documentos para provar que Maria Stella é a autora estreante mais velha do mundo. Caso obtenha êxito, ela ganha um lugar no Guiness Book, o Livro dos Recordes.

A presença do primeiro automóvel no sertão fez barulho, literalmente. Maria Stella, filha do coronel João Nascimento e de Maroca, tinha 12 anos quando presenciou o fato. "Tinha gente que corria para se esconder no mato, como se estivesse vendo uma assombração ou a besta-fera", relembra ela, que vive com a filha Maria Helena, de 76 anos.

O Rio Pajeú aparece várias vezes na publicação. Foi brincando à margem dele, em 1918, que a escritora pôde ver as sombras e ouvir as vozes do bando de Virgulino Ferreira, o Lampião. "O rio ficava no quintal da minha casa. Eu estava perto dele quando vi, de longe, o bando passar. Escutei tiros. Lampião havia assassinado um homem que trazia um ofício às forças volantes, informando que o bando encontrava-se na região", recorda.

Lampião ainda protagoniza uma das histórias mais interessantes do livro. Conta-se que ele havia decidido atacar o município de Custódia, próximo à cidade dos Siqueira Campos. O cangaceiro mandou um garotinho até a cidade para verificar quantos soldados havia no quartel ou na delegacia. Ao voltar, o menino anunciou: "No quartel, só tem cem". Temeroso com o grande número de macacos, maneira pela qual chamava os guardas, Virgulino desistiu da invasão. O que ele não sabia é que Cem era o apelido do único soldado presente no quartel naquele dia.

Em 1921, com apenas 17 anos, Maria Stella viria a ser a primeira-dama de Flores, ao se casar com o coronel Antônio Medeiros, que morreu em 1943, vítima de ataque cardíaco. Desde então, não teve outro companheiro. "Fui de um homem só", admite. Teve 11 filhos (cinco mortos), 37 netos e 45 bisnetos. O título de primeira-dama, no entanto, nunca foi visto com bons olhos pela escritora. "Eu era apenas a esposa do coronel. Mulher não tinha direito a nada, nem votar a gente podia", diz.

Porém, Maroca, a mãe da escritora, numa atitude ousada para época, não permitiu que os filhos (22 nascidos, apenas oito crescidos) se tornassem analfabetos. A professora Porfíria, "uma negra muito inteligente", segundo Maria Stella, ensinou-lhe A Marselhesa, o hino nacional da França. "Minha mãe sempre dizia que mulher não foi criada para ficar na cozinha e sim para ler e escrever", continua a aposentada.

Como dona de casa, ela assume que deixou a desejar. "Não sei fritar um ovo."

Maria Stella saiu de Flores por volta dos anos 50, depois que sua família começou a ter divergências com outro grupo político local - fato que a escritora omitiu do livro. Viveu 15 anos em Pesqueira, interior do Estado, até fixar moradia em Recife, em meados dos anos 60. Desde então, voltou à terra natal em apenas três ocasiões. A última delas foi há nove anos. "Tenho saudades de lá, mas muita coisa mudou."

Uma das lembranças mais fortes é o salão da Câmara Municipal da cidade, que, curiosamente, funcionava sobre a cadeia pública local. Nos dias dos bailes oficiais, enquanto mulheres e homens bem vestidos dançavam e se divertiam no salão, os presos permaneciam em suas camas ouvindo a orquestra tocar valsas. "Era uma coisa sem maldade. Imagino que naquelas noites os presos deviam remoer suas consciências."

Fonte: Especial "Testemunhas do Século" Revista IstoÉ Gente

Nenhum comentário: