quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Poesia

Cancioneiro do destemor
"O cangaço na poesia brasileira" reúne poemas sobre os anti-heróis do Nordeste, do começo do século passado às produções recentes.

Por Dellano Rios

Bandido famélico, sujo de poeira da terra seca, a ameaçar a paz de propriedades rurais e pequenas cidades ganhou novas. Um dia, assim foram descritos os cangaceiros. O fenômeno social, que teve o sertão nordestino por palco, logo chamou a atenção de ficcionistas, e terminou sendo transformado por eles. Na literatura, o banditismo foi tomado por uma "questão de classe", como na letra de Chico Science. Virou o herói do regionalismo de estética naturalista, dos homens bestializados lutando para sobreviver num mundo hostil.


O cinema o transformou em herói moderno, da saga nordestina - e, em alguns casos, fez dele uma versão brasileira dos bravos e heróicos caubóis de Hollywood. Na poesia, a aventura do cangaço seguiu ininterrupta, mesmo após o declínio e o desaparecimento dessa figura, convertido em personagem arquetípico da literatura de folhetos (cordel).


Nessa outra aventura, a da recriação do cangaceiro, ficam lacunas, e o objetivo de "O cangaceiro na poesia brasileira" é ajudar a suprimir uma delas. Organizado pelo poeta e ensaísta Carlos Newton Júnior, professor da Universidade Federal de Pernambuco, o livro traz uma mostra da presença do cangaço na poesia "erudita", que não poucas vezes dialogou com a tradição popular para recriar o universo do cangaço. "Eu sou um curioso sobre essa questão de cangaço. Leio sobre o tema desde os 14 anos. Não sou um pesquisador no cangaço, mas sou um leitor de pesquisadores", se apresenta o organizador. Também poeta, Carlos Newton Júnior escreveu sobre o tema, em seu livro "Canudos: poema dos quinhentos" (1999). Seu poema "Os cangaceiros" integra a coletânea.


Foi quando deu seus primeiros passos como poeta, na década de 80, que Carlos Newton Júnior atentou para essa tradição esquecida, dos poetas eruditos que escreveram sobre o cangaço. "Quando se falava nisso, o normal era pensar logo romance de 30, e na literatura de cordel. Como acompanhava a poesia brasileira, encontrava esses poemas. Percebi que o tema também tinha apaixonado vários poetas eruditos. O livro nasceu daí, de uma ´pesquisa´ que fiz ao longo de muito tempo, como um leitor curioso. De repente, percebi que tinha um material razoável, e organizei em menos de um ano. Costumo trabalhar assim: vivo encaminhado projetos que vão sendo construídos com o tempo, em minhas visitas a sebos", conta.


Desregionalizar


Em "O cangaço da poesia brasileira", encontram-se autores heterogêneos. O primeiro contraste é o que separa escritores que romperam as barreiras locais e regionais, que conseguiram entrar para o cânone nacional, e outros que tornaram-se célebre em territórios restritos. De um lado, os pernambucanos Ariano Suassuna ("A cantiga de Jesuíno"), João Cabral de Melo Neto ("Por que perderam o ´Cabeleira´" e "Antonio Silvino no Engenho Poço") e Bráulio Tavares ("Virgolino não morreu"); de outro, os cearenses Sânzio de Azevedo ("Vida, proezas e morte de Jesuíno Brilhante") e Jáder de Carvalho ("Nordeste de Lampião"), o capixaba Dorian Gray Caldas ("O Cabeleira") etc.


Não que haja uma hierarquia, baseada na fama. E são exatamente esses poetas de expressão local que fazem o livro valer. Afinal, é importante que Suassuna e João Cabral estejam lá, mas seus poemas são mais facilmente localizáveis. "É um prazer resgatar certos poetas ´desconhecidos´. Gosto muito do Paulo Bandeira da Cruz (1940 - 1993). Você só encontra seus livros em sebos. E olha que ele teve edições nacionais, pela José Olympio, mas depois que morreu quase não se fala nele", lamenta Carlos Newton Júnior. Para o organizador, o cangaço é a grande "epopeia do Nordeste", referindo-se ao gênero da poesia épica, protagonizada pelos heróis de um povo. "O cangaceiro representou para o Nordeste mais ou menos o que o samurai representa para o Japão", compara.


Epopeia que se constrói com muitas vozes e, dentro delas, de ecos. Carlos Newton explica que é comum ver nos versos de poetas erudito sobre o cangaço vestígios da imagem do personagem no cinema e, sobretudo, da literatura popular. "Não à toa, poetas como o Sânzio e Jáder usa a forma popular, mesmo sem fazem parte dessa tradição", explica.


Fique por dentro 
Confira trechos de poemas que se encontram no livro:
Num canto da sala,/
já meio fatigados, talvez procurando disfarçar a impaciência/
os noivos esperavam o fim da festa sem fim./
Bem dizer de manhãzinha, e aquela festa sem acabar! E,/
na casa dos noivos a rede armada a chamar por eles!/
Súbito, cavalos param sob a latada, resfolegantes./
Gritos bárbaros, gritos selvagens, pulos da sela ao chão,/
alguns tiros a esmo./
Era o bando de Sabino que ninguém esperava!/
Os pares, suados, imobilizaram os gestos, olhos gritantes de pavor./
Os noivos se aconchegaram, lívidos, tremendo. A harmônica/
emudeceu como que assassinada./
"Nordeste de Lampião", de Jáder de Carvalho (1901 - 1985)
"Na faca e no bacamarte estava a lei dos Feitosas gente violenta e orgulhosa pioneira do Ceará gente de capitães-mores senhores de escravaria sangue índio e português em suas veias corria o capitão Virgulino de tal gente descendia."
"Romance de Lampião", de Maria José de Carvalho (1919 - 1995)
Antologia
"O cangaço na poesia brasileira"
Carlos Newton Júnior (org.)
R$ 34,00
254 páginas
Editora: Escrituras


Ilustração: Maria Bonita, companheira de Lampião, em xilogravuras do artista João Pedro, de Juazeiro do Norte.


Fonte: Diário do Nordeste

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